quarta-feira, junho 24, 2009

A próxima pessoa que tentar me convencer de que existe uma "pedagogia do sofrimento" ou uma "filosofia da provação" leva um soco no nariz. Tudo isso não trouxe nada, continua não trazendo nada, não me ensinou nada. Cuidar de uma desgraça não basta para suprimi-la. Se o sofrimento de fato purificasse a alma, seria desejável, haveríamos até mesmo de pagar por isso. O desemprego tem envenenado um pedaço significativo da minha vida e está deixando traços indeléveis. É preciso ser burro e terrivelmente masoquista para acreditar nas vantagens revigorantes do padecimento.
Nada como um pouco de ceticismo. Pirro, quando perguntado a respeito da morte, cita Homero: "Morra você também, amigo. Por que gemer assim? Pároclo também morreu, e valia muito mais do que você."

segunda-feira, junho 15, 2009

" (...)

O comboio já partiu da outra estação...
Adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio despedir-se de mim,
Minha família abstrata e impossível...

Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida, adeus vida!
Ficar como um volume rotulado esquecido,
Ao canto do resguardo de passageiros do outro lado da linha.
Ser encontrado pelo guarda casual depois da partida
"E esta? Então não houve um tipo que deixou isto aqui?"
Ficar só a pensar em partir,
Ficar e ter razão,
Ficar e morrer menos...

Vou para o futuro como para um exame difícil.
Se o comboio nunca chegasse e Deus tivesse pena de mim?
Já me vejo na estação até aqui simples metáfora.
Sou uma pessoa perfeitamente apresentável.
Vê-se — dizem — que tenho vivido no estrangeiro.

Os meus modos são de homem educado, evidentemente.
Pego na mala, rejeitando o moço, como a um vicio vil.
E a mão com que pego na mala treme-me e a ela. Partir!
Nunca voltarei,
Nunca voltarei porque nunca se volta.
O lugar a que se volta é sempre outro,
A gare a que se volta é outra.
Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia.
Partir! Meu Deus, partir! Tenho medo de partir!"

Álvaro de Campos, in "Marinetti Acadêmico"

sexta-feira, junho 12, 2009

A internet nos aproxima dos distantes e nos distancia dos próximos. Tenho certeza de que eu era muito mais presente na vida dos meus amigos brasileiros quando estava na Alemanha.
“Fácil concluir que dois e dois são quatro à sombra duma figueira. Queria era ver alguém puxar as linhas e outros segmentos, fechar rigorosamente um círculo, demonstrar enfim um teorema em plena fogueira do inferno”

Raduan Nassar, in "Um copo de cólera"
"Meus dias são sempre como uma véspera de partida. Movimento-me entre as pontas como quem sabe que daqui a pouco já não vai estar presente. As malas estão prontas, as despedidas foram feitas. Caminhando de um lado para o outro na plataforma da estação, só me resta olhar as coisas lerdo e torvo, sem nenhuma emoção, nenhuma vontade de ficar. As janelas abrem para fora, os bancos parecem-se aos bancos e os vasos foram feitos para se colocar flores em seu oco. As coisas todas parecem-se a si próprias. Nada modificará o estar das coisas, e minha partida ontem, hoje ou amanhã não mudará coisa alguma. Cada coisa se parece exatamente com a coisa que ela é. Assim, eu próprio, me parecendo a mim mesmo, de uma lado para o outro, entre cigarros sem sabor, jornais sangrentos e a certeza de que o único fato que poderia deter minha partida seria a tua aceitação deste convite: não queres me ajudar a matá-lo?”

Caio Fernando Abreu, in "Morangos Mofados"

segunda-feira, junho 08, 2009

"Um sábio perguntava a um louco qual era o caminho da felicidade. O louco respondeu-lhe imediatamente, como alguém a quem se pergunta o caminho da cidade vizinha: «Admira-te a ti mesmo e vive na rua». «Alto lá», exclamou o sábio, «pedes demais, basta já que nos admiremos!» E o louco respondeu logo: «Mas como admirar sem cessar se não nos desprezarmos constantemente?»"

Friedrich Nietzsche, in "A Gaia Ciência"

segunda-feira, junho 01, 2009

Para onde vai a minha vida, e quem a leva?
Por que faço eu sempre o que não queria?
Que destino contínuo se passa em mim na treva?
Que parte de mim, que eu desconheço, é que me guia?

O meu destino tem um sentido e tem um jeito,
A minha vida segue uma rota e uma escala
Mas o consciente de mim é o esboço imperfeito
Daquilo que faço e sou: não me iguala

Não me compreendo nem no que, compreeendendo, faço.
Não atinjo o fim ao que faço pensando num fim.
É diferente do que é o prazer ou a dor que abraço.
Passo, mas comigo não passa um eu que há em mim.

Quem sou, senhor, na tua treva e no teu fumo?
Além da minha alma, que outra alma há na minha?
Por que me destes o sentimento de um rumo,
Se o rumo que busco não busco, se em mim nada caminha

Senão com um uso não meu dos meus passos, senão
Com um destino escondido de mim nos meus atos?
Para que sou consciente se a consciência é uma ilusão?
Que sou entre quê e os fatos?

Fechai-me os olhos, toldai-me a vista da alma!
Ó ilusões! Se eu nada sei de mim e da vida,
Ao menos eu goze esse nada, sem fé, mas com calma,
Ao menos durma viver, como uma praia esquecida…"

Fernando Pessoa