sábado, outubro 28, 2006


Meu irmão encontrou-a abandonada em algum beco do Jabaquara e resolveu adotá-la clandestinamente. Alguns dias mais tarde tornei-me cúmplice desse pequeno delito e decidimos instalá-la em caráter definitivo no sobrado em construção ao lado da nossa casa. Ela era menor do que a minha mão e por isso eu precisei das duas para segurá-la - há 13 anos.

Nosso plano foi desmascarado durante uma das visitas diárias dos meus pais à obra. Rendendo-se ao inevitável, aceitaram a gata como parte da família. Era uma tarde ensolarada das férias escolares de 1993. Lembro-me de ter cuidadosamente retirado, com um pente bem fino e uma bacia de água morna, todos os parasitas que a infestavam. Raísa evidentemente protestou contra o processo de limpeza, mas ao mesmo tempo olhou-me profundamente e aceitou-me como dona. Ou melhor: resignou-se. Um rostinho tão delicado e inomum.

Foram 12 anos de carinho. Assistimos muita TV a cabo juntas nas minhas madrugadas insones. Ela impediu-me muitas vezes de finalizar raciocínios importantes para as petições feitas no computador de casa nos finais de semana, porque ao exigir atenção subia em cima do teclado e tornava qualquer tentativa de digitação simplesmente impossível. Uma de suas atividades prediletas era afiar as garras no meu roupão de banho ou na barriga sonolenta do meu pai, encostado no sofá enquanto via o Jornal Hoje após o almoço.

Ela tinha medo de fogos de artifício. Felizmente não eram tão frequentes assim as ocasiões nas quais esses rojões tornavam o céu pequeno para tanta fumaça.

Hoje à noite recebi a notícia. Não pude me despedir. Não sei se ela compreendeu que infelizmente não pude estar presente quando meu irmão teve de tomar sozinho a terrível decisão de sacrificá-la. Não pude levá-la até o fim. Atendendo a um pedido meu, recebeu antes da longa jornada um pouco de requeijão, seu alimento predileto - e também o único que despertava algum interesse nessa fase terminal. Não sei se teria me escolhido ou novamente me aceitado neste último momento. Ou se agora, embora maior do que a minha mão, fosse capaz de ser maior do que a minha saudade.

segunda-feira, outubro 23, 2006

O presidente do Brasil não corrompe somente o conceito de ética; ele corrompe toda uma linguagem. Ele distorce o sentido das palavras ao sabor de suas conveniências. Assisti ao primeiro debate, via You Tube, e surpreendi-me com a utilização leviana do adjetivo "leviano". Ao que parece, o genial guia dos povos e absoluto senhor das urnas, vulgo Lula, acabou de acrescentar mais uma palavrinha ao seu escasso vocabulário.

"Burguês", no glossário lulista, tem inevitavelmente sentido pejorativo. "Elite", então, é uma das palavras mais maltratadas durante todo o governo Lula. Elite
significa o que de melhor uma sociedade produz e, portanto, é um termo de teor qualitativo. Certo? Errado. Agora virou insulto.

Ter uma origem humilde é a primeira e única garantia de que um governo é ou será adequado aos interesses da maioria da poupulação. Um sujeito "da elite" seria, segundo a lógica petista, absolutamente incapaz de exercer política a não ser em seu próprio benefício. No Brasil, a elite representa necessariamente um grupo desonesto e cruel. Pertencer à elite é ser um rico que só é rico porque rouba o dinheiro dos pobres.
"Escrever é, simplesmente, uma maneira de falar sem que nos interrompam." (Sofocleto)

"É preciso escrever o mais possível como se fala e não falar demais como se escreve." (Sainte-Beuve)

"Perdoe-me, senhora, se escrevi carta tão comprida. Não tive tempo de fazê-la curta." (Voltaire)

"Escrevo para que meus amigos me amem ainda mais." (Gabriel García-Márquez)

"Cada um escreve do jeito que respira. Cada um tem seu estilo. Devo minha literatura à asma." (Fabrício Carpinejar)

"Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer é porque um dos dois é burro." (Mário Quintana)

"Para escrever bem é preciso uma facilidade natural e uma dificuldade adquirida." (Joseph Joubert)

domingo, outubro 01, 2006

Geralmente sustento uma atitude extremamente crítica, eu diria até mesmo intransigente e intolerante, quanto aos textos de auto-ajuda. Não resisti, entretanto, à publicação do texto abaixo: pareceu-me BASTANTE razoável.

"Oito normas de conduta cotidiana para o cidadão moderno

1. Você pode escolher entre ficar em casa ou pegar a estrada e, sem dúvida, faz e fará um pouco dos dois. Mas, quando estiver em casa, tente não sonhar com a estrada e, quando estiver na estrada, tente não lamentar o calor do lar. Vivemos de sonhos e de nostalgias: é necessário cuidar para que essa alternância não nos mantenha constantemente afastados do momento presente.

2. Quando alguém pedir esmola ou ajuda, dê (na medida de seu possível) o que está sendo pedido. Não tente moldar o desejo de quem pede, oferecendo pão e leite em vez do trocado. A humanidade dos mais desprovidos se refugia e resiste justamente na capacidade de continuar desejando o supérfluo.

3. Todos os pedidos podem ser recusados, mas devem ser, ao menos, reconhecidos. Portanto é proibido recusar sem falar.

4. Trate como íntimo só quem poderia sem riscos lhe devolver a mesma cordialidade.

5. Caso você pretenda mudar o mundo, lembre-se de que, provavelmente, você não está à altura do mundo mudado segundo seu desejo. Se pretende transformar seu parceiro ou sua parceira, lembre-se de que você, provavelmente, não está à altura do parceiro ou parceira assim transformados. Quem quer mudar as coisas facilmente esquece de contar-se entre os itens a serem alterados.

6. Qual é a melhor viagem: visitar as capitais européias num tour de 15 dias ou passar duas semanas em uma só cidade e conhecê-la um pouco mais profundamente? É mais interessante manter um casamento complicado do que multiplicar as ou os amantes. O mesmo vale para os amigos e relações em geral.

7. Uma vez por semana, durante uma hora, sente-se numa esquina de sua cidade e contemple os passantes. Tente imaginar a variedade das vidas, a dignidade de todas. Se você tem filhos, faça o exercício duas vezes por semana: será de grande ajuda para aceitar que a vida deles vale a pena, mesmo se não corresponde em nada aos seus sonhos.

8. Considere como verdade absoluta que é possível ter uma vida boa e justa sem acreditar numa verdade absoluta."

Contardo Calligaris, in Folha de S.Paulo, 13 de outubro de 2002.
“No meu cansaço perdido entre os gelos,
E a cor do outono é
um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância”

Fernando Pessoa, in "Poesia (1902/1917)"
"Kennst du das Land, wo die Zitronen blühn,
Im dunklen Laub die Gold-Orangen glühn,
Ein sanfter Wind vom blauen Himmel weht,
Die Myrte still und hoch der Lorbeer steht,
Kennst du es wohl?
Dahin! Dahin
Möcht ich mit dir, o mein Geliebter, ziehn.

Kennst du das Haus? Auf Säulen ruht sein Dach,
Es glänzt der Saal, es schimmert das Gemach,
Und Marmorbilder stehn und sehn mich an:
Was hat man dir, du armes Kind getan?
Kennst du es wohl?
Dahin! Dahin
Möcht ich mit dir, o mein Beschützer, ziehn!

Kennst du den Berg und seinen Wolkensteg?
Das Maultier sucht im Nebel seinen Weg:
In Höhlen wohnt der Drachen alte Brut;
Es stürzt der Fels und über ihn die Flut,
Kennst du ihn wohl?
Dahin! Dahin
Geht unser Weg! o Vater, laß uns ziehn!"

Johann Wolfgang von Goethe, in "Kennst du das Land?"
"Larga a cidade masturbadora, febril,
rabo decepado de lagartixa,
Larga a cidade e foge!
Larga a cidade!
Vence as lutas da família na vitória de a deixar.
Larga a casa, foge dela, larga tudo!
Nem te prendas com lágrimas que lágrimas são cadeias!
Larga a casa e verás — vai-se-te o Pesadelo!
A família é lastro: deita-a fora e vais ao céu!
Mas larga tudo primeiro, ouviste?
Larga tudo!
Os outros, os sentimentos, os instintos,
e larga-te a ti também, a ti principalmente!
Larga tudo e vai para o campo
e larga o campo também, larga tudo!
— Põe-te a nascer outra vez!
Não queiras ter pai nem mãe,
não queiras ter outros nem Inteligência!
Larga tudo e a ti também!
Mas tu nem vives nem deixas viver os demais
Crápula do Egoísmo, cartola d'espanta-pardais!
Mas hás de pagar-Me a febre-rodopio
Mas hás de pagar-Me a febre-calafrio
Hei de ser a bruxa do teu remorso!
Hei de reconstruir em ti a escravatura negra!
E mais do que isto ainda, muito mais:
Hei de ser a mulher que tu gostes,
hei de ser Ela sem te dar atenção!"

José de Almada Negreiros, in "A Cena do ódio"
A minha canção do Exílio

Quem nunca fui é um grito na memória.
Há uma história por contar na minha história.

Eu que parti e que estou sempre presente
E quando fiquei estive sempre ausente

Eu que tinha perdido o Brasil e que o encontrei
em cada esquina alemã
Eu que vim descobrir e até agora não descobri
que o caminho das Índias passa pela casa da minha mãe

Não tenho o carnaval
Já não penso no arroz com feijão
Eu que só tenho o éter e a cocaína
Aqui não se toma tristeza ou alegria