segunda-feira, janeiro 23, 2006

"Só na velhice a mesa fica repleta de ausências.
Chego ao fim, uma corda que aprende seu limite
após arrebentar-se em música.
Creio na cerração das manhãs.
Conforto-me em ser apenas homem.
Envelheci,
tenho muita infância pela frente."

Fabrício Carpinejar
"- (...) Vós quereis tentar a sorte na grande cidade, e sabeis bem que é lá que deveis gastar essa aura de valentia que a longa inacção dentro destas muralhas vos houver concedido. Procurareis também a fortuna, e devereis ser hábil a obtê-la. Se aqui aprendeste a escapar à bala de um mosquete, lá deveis aprender a saber escapar à inveja, ao ciúme, à rapacidade, batendo-vos com armas iguais com os vossos adversários, ou seja, com todos. E portanto escutai-me. Há meia hora que me interrompeis dizendo o que pensais, e com o ar de interrogar quereis mostrar-me que me engano. Nunca mais o façais, especialmente com os poderosos. Às vezes a confiança na vossa argúcia e o sentimento de dever testemunhar a verdade poderiam impelir-vos a dar um bom conselho a quem é mais do que vós. Nunca o façais. Toda a vitória produz ódio no vencido, e se se obtiver sobre o nosso próprio senhor, ou é estúpida ou é prejudicial. Os príncipes desejam ser ajudados mas não superados.

Mas sede prudente também com os vossos iguais. Não humilheis com as vossas virtudes. Nunca falei de vós mesmos: ou vos gabaríeis, que é vaidade, ou vos vituperaríeis, que é estultícia. Deixai antes que os outros vos descubram alguma pecha venial, que a inveja possa roer sem demasiado dano vosso. Devereis ser de bastante e às vezes parecer de pouco. A avestruz não aspira a erguer-se nos ares, expondo-se a uma exemplar queda: deixa descobrir pouco a pouco a beleza das suas plumas. E sobretudo, se tiverdes paixões, não as ponhais à vista, por mais nobres que vos pareçam. Não se deve consentir a todos o acesso ao nosso próprio coração. Um silêncio cauto e prudente é o cofre da sensatez."

Umberto Eco, in "A ilha do dia anterior"

segunda-feira, janeiro 16, 2006

"Hoje, aos vinte e cinco, na expectativa de uma vida mais tranqüila, Antoine tomou a decisão de cobrir o cérebro com o manto da estupidez. Ele constatara muitas vezes que inteligência é palavra que designa baboseiras bem construídas e lindamente pronunciadas, e que é tão traiçoeira que freqüentemente é mais vantajoso ser uma besta que um intelectual consagrado. A inteligência torna a pessoa infeliz, solitária, pobre, enquanto o disfarce de inteligente oferece a imortalidade efêmera do jornal e a admiração dos que acreditam no que lêem. Em um mundo em que a opinião pública está confinada nas pesquisas às possibilidades sim, não e sem opinião, Antoine não queria preencher nenhum quadradinho. Ser a favor ou contra era para ele uma insuportável limitação às questões complexas."


Martin Page, in "Como Me Tornei Estúpido"

quinta-feira, janeiro 12, 2006

Primeira-dama: Nel mezzo del Cammin - João Ubaldo Ribeiro

"No meio do caminho de sua vida, a nossa primeira-dama recebeu passaporte italiano. Temos alguma coisa a ver com isso? Segundo li, a primeira-dama tirou passaporte italiano para si e para os filhos, 'para um caso de necessidade'. Justo, justo, nunca se sabe. Mais uma vez, damos um belo exemplo de pioneirismo, pois devemos ser o único país onde a esposa do presidente pegou uma cidadaniazinha extra, para o caso de necessidade. Não conheço a lei italiana e não sei se agora, querendo, a primeira-dama pode transformar seu ilustre cônjuge em cidadão italiano também. Casou com italiana, italiano será. Deve ser possível, ainda mais se tratando de um povo sentimental como o italiano.

E o caso de necessidade? Bem, sempre pode ser que o presidente se desgoste com o Brasil, depois de fazer o maior governo da história 'deste país' (promovido recentemente da condição de 'esse país') e parta para presidir a Itália. Falando como ele fala, deve fazer sucesso, ainda mais que lá o presidente não governa, mais ou menos como atualmente aqui. Quem governa é o Primeiro-ministro, de que no momento andamos meio em falta, mas pode ser também um italiano, na condição de oriundo, o dr. Palocci.

Não creio, contudo, que venhamos a ter essa sorte, até porque certamente haverá algumas formalidades para a concessão de cidadania tão especial quanto a de um presidente, como, por exemplo, passar por uma entrevista. Aí, apesar de seu talento oratório, o presidente pode falhar. Não por nada de desabonador, porque será muito simpático, envergará trajes típicos napolitanos, dirá que torce pelo time da casa em que cidade estiver e prometerá o que o mandarem prometer, como aqui. Mas é que o presidente, como nas suas entrevistas aqui, dirá que não sabe de nada nem cabe ao presidente saber de nada, só cabe presidir, ou seja viajar, inaugurar coisas que preferivelmente requeiram que ele acione uma geringonça qualquer e bravatear inanidades em linguagem pós-neandertalesca.

Saber mesmo de alguma coisa, notadamente do que aconteceu e acontece antes e durante seu mandato, ele não vai saber, nós todos vimos como ele não sabe de nada. Nem mesmo se vai concorrerà reeleição. Ele só sabe, ou imagina saber, que a gente é besta e todo mundo nasceu ontem, embora eu ouse lembrar que quem se acha sabido ou malandro demais acaba se ferrando. Claro que todo mundo acreditou que ele não sabe mesmo se vai se candidatar e a noção que a gente tem, de que ele gostaria de permanecer o resto da vida lá, é puro preconceito, coisa das elites, complô da imprensa, conspiração da direita, artes da CIA e por aí vai.

Não, não, esse caso da Itália é muito remoto para se pensar nele agora. Vamos ver se, no Carnaval, haverá um Baile do Passaporte ou Uma Noite na Toscana, na Granja do Torto. Aí a gente começa a desconfiar de alguma coisa. Antes, é má vontade. Vamos pensar, por exemplo, que é verdade que o PIB foi mixuruca e promete continuar assim. Mas nós pagamos o que devíamos ao FMI, viram, viram? Agora eu quero ver eles falarem mal da gente e deixarem de convidar o presidente para exercitar os tradutores de besteirol da Comunidade Européia e, com certeza, o jornal esloveno de maior circulação fará uma matéria amplamente divulgada aqui, cantando as belezas e encantos do Brasil.

O espetáculo do crescimento já está rolando e vai rolar neste país (vou parar de dizer 'Brasil', a moda presidencial é 'este país', que já fica um pouco mais presente que o antigo 'esse país', mas continua soando meio 'eles lá e eu cá') de uma forma imprevista, o povo brasileiro realmente nunca decepcionou."