sábado, setembro 30, 2006

Ultra aequinoxialem non peccari

Trecho dedicado à visita de amanhã ao consulado geral do Brasil em Frankfurt. A malandragem só é lucrativa quando a honestidade é a regra geral. Por enquanto o número de exploráveis ainda é maior do que o número de exploradores: nosso frágil equilíbrio não está em perigo.

"Corria na Europa, durante o século XVII, a crença de que aquém do Equador não existe nenhum pecado. Como se a linha que divide o mundo em dois hemisférios também separasse a virtude do vício. É possível acompanhar ao longo da nossa história o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente propício em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. (...) Cada indivíduo afirma-se ante os seus semelhantes indiferente à lei geral, onde esta lei contrarie suas afinidades emotivas, e atento apenas ao que o distingue dos demais. A personalidade individual dificilmente suporta ser comandada por um sistema exigente e disciplinador. Sugiro nestas páginas o vinco secular que deixaram na psique nacional os desmandos da luxúria e da cobiça. Esses influxos desenvolveram-se no desenfreamento do mais anárquico e desordenado individualismo, desde a vida isolada e livre do colono que aqui aportava, até as lamúrias egoístas de poetas enamorados e infelizes. Ubi bene, ibi patria (onde se está bem, aí é a pátria), diz o nosso profundo indiferentismo pela vida comunitária. Explosões esporádicas de reação e entusiasmo apenas servem para acentuar a apatia quotidiana."

Paulo Padro, in "Retrato do Brasil"
Amores eólicos

É realmente uma pena ver tanta gente querida sozinha, condenada ao hedonismo. Procuram novas relações, insólitas e inesperadas, com o desejo de voltar a sentir uma paixão que vivenciaram aos dezessete anos (on n'est pas sérieux, quand on a dix-sept ans - Rimbaud) e que vêem representadas nos filmes românticos. Querem sentir, tremer, girar, ferver.

Muita gente idealiza a vida afetiva e exalta o amor conjugal como algo extraordinário e maravilhoso, o que não corresponde à verdade. O tal amor conjugal é uma tarefa eternamente inacabada. No início somos tentados a romantizar idas ao supermercado, à locadora, visitas às respectivas famílias. O dia-a dia, porém, põe tudo no seu devido lugar: emerge a realidade, sem subterfúgios. O parceiro escova os dentes e cospe pasta de dente no espelho, faz comentários constrangedores, está tão pouco habituado quanto você à rotina doméstica e produz ruídos desagradáveis quando dorme. Ele dobra as meias de uma maneira que você considera errada, não tampa corretamente a embalagem de suco e às vezes até mesmo tem uma visão política totalmente diferente da sua, apesar de te observar como uma parte indispensável do projeto pessoal dele e não conceber mais a vida sem a sua companhia.

As pessoas, de um modo geral, vivem frustradas por não encontrarem acordos rápidos, sinalagmáticos e válidos na vida amorosa. Depressa emerge o relativismo, e qualquer decisão nesse sentido deixa de ter importância. Se um casamento ou uma união não funcionam, é extremamente fácil encarar a separação como a única solução possível. Eu confesso que também já assumi essa maneira simplista e superficial de enfrentar os problemas afetivos, o que fez com que quase todos os meus relacionamentos anteriores fossem produto de uniões frágeis e utilitárias, que só me causaram sofrimento.

Aprendi a dizer não às novas e inesperadas paixões que possam alterar o já frágil equílíbrio de uma relação que pretende ser duradoura. Não me submeto mais à tirania do capricho. Estímulos imediatos são indiscutivelmente capazes de divertir e de quebrar a inevitável monotonia, mas... vale a pena?

Considerar o prazer e a paixão desmedida como meta absoluta de comportamento em um relacionamento é um erro que não cometo mais. A melhor das relações conjugais contém problemas, fracassos e retrocessos. Uma parte essencial da felicidade afetiva constitui sacrifício e renúncia, sim.
"Estudo-me a mim mesmo mais do que qualquer outra coisa, e esse estudo constitui toda a minha física e a minha metafísica. Gostaria mais de entender bem o que se verifica em mim do que compreender perfeitamente Cícero. na minha experiência própria já tenho com que me tornar sábio, desde que atente para seus ensinamentos."

Montaigne, in "Ensaios"
Cada vez mais estou convencida de que as pessoas se aproximam umas das outras não por atração ou por simpatia, como supuseram os filósofos ao longo dos tempos. A aproximação é resultado da persecução dos próprios interesses frente aos interesses dos demais. O impulso grupal da massa humana solitária constitui uma reação, uma concentração de pessoas frias que não suportam a própria frieza, mas que também nada podem fazer para alterá-la. Em minha ingenuidade, atribuí falsamente essa característica ao caráter alemão - em vez de creditá-la à franqueza psicológica desse povo, com o qual estou aprendendo, mesmo contrafeita, a difícil arte da convivência.

sexta-feira, setembro 22, 2006

Amigos, entendam. Não posso falar nem calar. Sei que mensagens eletrônicas geralmente nascem dessa dupla impossibilidade, que elas superam e da qual se nutrem. Só mais um pouquinho de paciência, por favor.

sábado, setembro 16, 2006

O que hoje aprendi para dizer-me
Talvez não caiba no jeito do verso
Não cabe, por minha falta
Mas eu aprendi.

Desde hoje serei mais eu
Estarei mais onde estiver.


José de Almada Negreiros

sexta-feira, setembro 15, 2006

Exílio



Quando a pátria que temos não a temos


Perdida por silêncio e por renúncia


Até a voz do mar se torna exílio


E a luz que nos rodeia é como grades




Sophia de Mello Breyner Andersen

quarta-feira, setembro 13, 2006

domingo, setembro 10, 2006

"Lula é o melhor candidato mesmo. Era o melhor candidato na eleição que ganhou e continua a ser agora. Eu não tou falando de governo, tou falando de candidato, candidato eficiente, que sabe se eleger. Ele não entende xongas de governar merda nenhuma, não sabe nada disso, nem quer saber. Agora, candidato, meu amigo, vamos nos curvar, o homem é bom.

Frescura de carisma, não é nada disso. É que ele sabe fazer campanha. Ele é esperto e neguinho já foi na dele. Não pense que ele acha que está enganando ninguém, não. Ele tá sabendo que todo mundo tá sabendo qual é a dele, o brasileiro aprecia a boa malandragem, o cara safo, que diz qualquer coisa e continua o rei dos inocentes. Qual seria o outro candidato a presidente que apoiaria dois candidatos ao governo do mesmo Estado, ao mesmo tempo? Só ele. E numa boa, malandro, quem quiser que vá reclamar, que ele faz um esporro, chama de elite, diz que não é nada disso e se queixa de injustiças, ele é um gênio, talvez o famoso gênio da raça.

E o povo está com ele. O povão está com ele. O povão só não. Todo mundo, porque ele joga com pau de dois bicos, eu já falei que ele é esperto, o brasileiro aprecia isso. Veio de baixo, se fez na vida sem trabalhar nem estudar, é um exemplo, neguinho entrou na dele. Do lado do povão, é isso mesmo, vem o bolsa-família, quebra o galho, isso aqui vira a Legião Brasileira de Assistência em forma de país e ninguém incomoda mais. Todo mundo no interior – e nem só quem precisa – já está com o rango e a cachacinha garantida, eles entraram na dele. Então ele joga esse bico pro lado dos pobres e pro lado dos ricos, que ele não é besta, ele segura a barra e estão todos os bancos felizes e satisfeitos, eles também tão na deles. Ele pisca o olhinho pros dois lados, ele é danado e um cara-de-pau fora de série, brasileiro gosta disso, ele é esperto, se virou muito bem pra subir na vida.

Já o Alckmin ganha apertado só no bairro dele. Aliás, é Geraldo, não é? É, Geraldo. E ele com aquela cara de Salustiano, chefe da contabilidade da rede autorizada Brastemp em Araraquara, com grande futuro na empresa. Ele pode ser até um grande administrador, mas Geraldo não cola, e ele fala como contador. Quando ele está indignado, acho que a temperatura se inflama até até uns 36 graus e a pressão dispara a 12 por 8. Entenda, estou falando de candidato. Com Lula não tem pra ninguém, meu camaradinha. Tá todo mundo vendo ele fazendo tudo o que sempre esculhambou nos outros numa boa, na malandragem, o brasileiro aprecia isso. O pobre está achando que está levando a melhor e o rico sabe que está levando a melhor. Ele é um gênio."

João Ubaldo Ribeiro, in "O Estado de São Paulo", 10 de setembro de 2006
“O que é belo a ponto de chorar é o amor. E mais ainda talvez: a loucura, a única salvaguarda contra o falso e o verdadeiro, a mentira e a verdade, a estupidez e a inteligência: fim do julgamento.”

Marguerite Duras

quinta-feira, setembro 07, 2006

Sigmund Freud Institut Frankfurt am Main - Beratungsgespräch


Ontem assisti um interessante episódio de "Sex and the City". Em sua busca pelo relacionamento perfeito, a personagem Charlotte acaba encontrando um rapaz por quem fica verdadeiramente interessada. Ela estranha somente o fato de ele não chegar aos "finalmente", permanecendo "apenas" no carinho e na gentileza.


Charlotte fica mais instigada ainda quando descobre que o homem tivera, anos atrás, um caso com Carrie, de quem recebe o seguinte diagnóstico: trata-se de um verdadeiro tarado. A revelação aumenta a excitação de Charlotte, e ela parte para o ataque. Literalmente atira o cara na cama e é vítima de uma profunda decepção: o infeliz simplesmente nega fogo.


O que mais a impressiona, porém, é o fato de o rapaz não demonstrar nenhum tipo de constrangimento ou culpa pela evidente impotência. Ao contrário: parece estar feliz da vida. Numa segunda ocasião, e diante de um reiterado fracasso, Charlotte não resiste e pressiona o parceiro, questionando a fama de garanhão e o tipo de performance que a ela foi dedicada. A explicação dele é mais ou menos assim: "Eu era um tarado, sim, mas antes. Antes da Fluoxetina. Eu era um homem completamente volúvel e infeliz e descarregava tudo isso no sexo. Depois do remédio, tudo mudou e eu estou muito bem assim." Os esclarecimentos foram dados com um sorriso límpido e tranqüilo nos lábios.


Mesmo com a insistência de Charlotte, as condições não se alteram. O desespero da moça somente faz aumentar, principalmente quando o cara diz "às vezes eu fico como uma samambaia". Ela sugere então que ele renuncie ao medicamento. Reação: "Você quer que eu pare de tomar o remédio? Creio que não seria o caso. Afinal, você prefere um namorado calmo, gentil e carinhoso a um tarado instável e inconseqüente, não é?"


A resposta de Charlotte: "Não."


E cada um vai para o seu lado...

terça-feira, setembro 05, 2006


Seguindo a linha Estupidista, em homenagem ao post da "A gata comeu":


Dartagnan

Todos corajosos sim, os famosos mosqueteiros
Os perigos a enfrentar e ajudar terceiros
Mil donzelas a salvar , os três mosqueteiros
Contra o mal sempre a lutar,
E ao fraco ajudar

E nas lutas sem igual,
Mil vitórias nos combates,
Um por todos contra o mal,
E todos por um,
E o amor de Dartagnan era pra Juliete
Conquistou seu amor e seu coração

Dartagnan, Dartagnan, é um valente e forte
Dartagnan, Dartagnan, a enfrentar a morte
Dartagnan, Dartagnan, sempre em defesa do mais fraco e oprimido

Dartagnan, Dartagnan, de todos é amigo
Dartagnan, Dartagnan, aos fracos da abrigo
Dartagnan, Dartagnan, a todos quer sempre ajudar


Legal mesmo foi compartilhar essa recordação com o meu marido, cuja infância não teve quase nada em comum com a minha. Ele localizou a versão alemã da abertura do desenho para mim!


Dartagnan

Früher, es ist lange her
Als noch scharf der Degen blinkten
Und dem Mann von Ruhm und Ehr'
Schöne Damen winkten
Damals galt nur der als Mann
Der zum Kampf sich stellte
Und wer ein Duell gewann
War ein großer Held.

Frankreichs stolze Heldenschar
War'n des Königs Musketiere
Ohne Rücksicht auf Gefahr
Immer Kavaliere
Jeder kannte Aramis
Porthos und auch Athos
Bis dann auch zu ihnen stieß
Der junge D'Artagnan

D'Artagnan, D'Artagnan,
dein Stern wird heller strahlen
D'Artagnan, D'Artagnan,
du wirst Juliet gefallen
D'Artagnan, D'Artagnan,
wirst deinem König dienen als ein großer Held
D'Artagnan, D'Artagnan,
du wirst den Bösen schlagen
D'Artagnan, D'Artagnan,
und große Kämpfe wagen
D'Artagnan, D'Artagnan,
wirst alle überragen als Musketier

Daß auch ein Gesucht erdacht
Dunkle Pläne und Intrigen
Ihr habt sie zu Fall gebracht
Helft dem König siegen
Denn so habt ihr's ihm geschwor'n
Dem er alles schuldet
Niemals gebt ihr euch verloren
Eh' ihr Unrecht duldet

Einer steht für alle ein
Und die andern stehn für einen
Groß im Kampf, groß im Verzeih'n
Und mehr sein als scheinen
Blitzschnell wenn es einmal brennt
Sind wir Musketiere
Helden, die ganz Frankreich kennt
Gefürchtet und geliebt.

segunda-feira, setembro 04, 2006

Existe o direito de falar. E o DEVER de calar. Ou melhor, o dever de não dizer toda a nossa verdade. Eu deveria ter guardado para mim o que sei e em doses homeopáticas ir dizendo o que penso, à medida em que a interlocutora desse sinais de que era capaz de ouvir. É grande miséria não ter bastante inteligência para falar bem, nem bastante juízo para se calar. Eis o princípio de toda a impertinência.

“O silêncio - porque não te calas? Decerto, como depois da morte, cair-te-á em cima uma horda de malfeitores que se defendem na calúnia e no insulto para seres tu a defender-te da ofensa deles. Ser o primeiro a caluniar é ficar logo por cima. A não ser, como nas aldeias, que respondas com outro insulto. E a razão ficará então com quem tiver melhor pulmadura.”

Vergílio Ferreira, in “Escrever”


“O maior perigo que corre o ingênuo: o de querer ser esperto. Tão ingênuo que cuida, coitado, de que alguma vez no mundo o conhecimento valeu mais do que a ingenuidade de cada um. A ingenuidade é o legítimo segredo de cada qual, é a sua verdadeira idade, é o seu próprio sentimento livre, é a alma do nosso corpo, é a própria luz de toda a nossa resistência moral. Mas os ingênuos são os primeiros que ignoram a força criadora da ingenuidade, e na ânsia de crescer compram vantagens imediatas ao preço da sua própria ingenuidade.

Raríssimos foram e são os ingênuos que se comprometeram um dia para consigo próprios a não competir neste mundo senão consigo mesmos. A grande maioria dos ingênuos desanima logo de entrada e prefere tricher no jogo de honra, do mérito e do valor. São eles as próprias vítimas de si mesmos, os suicidas dos seus legítimos poetas, os grotescos espanatalhos da sua própria esperteza saloia.

Bem haja o povo que encontrou para o seu idioma esta denunciante expressão da pessoa que é vítima de si mesma: a esperteza saloia. A esperteza saloia representa bem a lição que sofre aquele que não confiou afinal em si mesmo, que desconfiou de si próprio, que se permitiu servir de malícia, a qual como toda a espécie de malícia não perdoa exactamente ao próprio que a foi buscar. Em português a malícia diz-se exactamente por estas palavras: esperteza saloia.

Parecendo tão insignificante, a malícia contudo fere a individualidade humana no mais profundo da integridade do próprio que a usa, porque o distrai da dignidade e da atenção que ele se deve a si mesmo, distrai-o do seu próprio caso pessoal, da sua simpatia ou repulsa, da sua bondade ou da sua maldade, legítimas ambas no seu segredo emocional.

Porque na ingenuidade tudo é de ordem emocional. Tudo. O que não acontece com as outras espécies de conhecimento onde tudo é de ordem intelectual. Na ordem intelectual é possível reatar um caminho que se rompeu. Na ordem emocional, uma vez roto o caminho, já nunca mais se encontrará sequer aquela ponta por onde se rompeu. O conhecimento é exclusivamente de ordem emocional, embora também lhe sirvam todas as pontas da meada intelectual.”

Almada Negreiros, in “Ensaios”
Nirgendwo und überall zu Haus

Es ist anstrengend, dass ich Kritik nicht so üben kann, wie es mir gefällen würde (ich beschwere mich gerne über alles) und wie ich es mit meinen Landsleuten tun könnte. Einem Brasilianer kann ich schreien, hör auf, das ist Wahnsinn, was du gerade sagst. Mit Argumenten kann ich ihn auseinander nehmen. Die Deutschen würden jedoch sagen: "Dann kehr doch züruck! Du bist doch selbst Ausländerin und sprichst im eigenen Interesse. Es ist nicht so, wie du sagst. Das ist nicht Wahr. In Brasilien wäre es doch bestimmt schlimmer."

sexta-feira, setembro 01, 2006

"Não acusamos a Natureza de imoral, se ela nos manda uma tro­voada e nos molha: porque chamamos imoral à pes­soa que prejudica? Porque, aqui, admitimos uma vontade livre exercendo-se arbitrariamente; ali, uma necessidade. Mas essa distinção é um erro. E mais: nem em todas as circunstâncias chamamos «imoral» mesmo ao ato de lesar com intenção; por exemplo, mata-se deliberadamente um mosquito, sem hesita­ção, apenas porque o seu zumbido nos desagrada, castiga-se com intenção o criminoso e inflige-se-Ihe sofrimento, para nos protegermos a nós e à socieda­de. No primeiro caso, é o indivíduo que, para se manter ou até para não se expor a um desagrado, faz sofrer intencionalmente; no segundo, é o Estado. Toda a moral aceita que se faça mal de propósito, em legítima defesa: ou seja, quando se trata da conser­vação de si próprio! Mas estes dois pontos de vista bas­tam para explicar todas as más acções cometidas por seres humanos contra seres humanos: ou se quer prazer para si ou se quer evitar desprazer; em qual­quer dos sentidos, trata-se sempre da conservação de si próprio. Sócrates e Platão também têm razão: seja o que for que o homem faça, ele faz sempre o bem, is­to é, aquilo que lhe parece bom (útil), consoante o grau da sua inteligência, consoante a respectiva me­dida da sua racionalidade."

Friedrich Nietzsche, in "Humano, Demasiado Humano"

Volta para a tua terra, pá!

Cartazes nas ruas de Lisboa anunciam aulas de forró. Caipirinha, pão de queijo, picanha, arroz e feijão já são pratos incorporados ao cardápio da grande maioria dos restaurantes portugueses. Em praticamente todas as lojas da cidade há brasileiros atrás do balcão.

Minha mãe é portuguesa e vive no Brasil há trinta anos. Ela desconhece o significado da palavra xenofobia. O fato é que estive em Lisboa na semana passada e senti a animosidade no ar. Na comunicação social portuguesa existem muitas referências aos "brasileiros", e sempre com um indisfarçado tom de estigmatização. Os casos – colacionados em apenas quatro dias, ressalve-se - são inúmeros. Consegui até mesmo uma significativa foto, que tentarei disponibilizar aqui.

Uma colunista do semanário “Visão”, por exemplo, atribui a derrota do candidato a primeiro-ministro Pedro Santana Lopes à escolha de marqueteiros "brasileiros" para a elaboração da campanha eleitoral. Ainda no mesma revista é possível ler uma reportagem sobre o último debate televisivo para as eleições, no qual o tal Santana Lopes esteve acompanhado de cinco pessoas, quatro referenciadas pelos nomes e a outra identificada apenas com um assessor "brasileiro".

Futebol na televisão portuguesa. Um repórter queixa-se, ao vivo, do operador de câmera "brasileiro" que estaria obstruindo a sua visão em um jogo de futebol. Mais tarde, ao analisar os insucessos do Futebol Clube do Porto no campeonato nacional, um comentarista da mesma emissora diz que a culpa é dos "brasileiros" que atuam no clube.

Marqueteiros, jogadores de futebol, publicitários, operadores de câmera. Não são apenas profissionais a desempenharem uma função. O trabalho em si não é analisado. A imprensa portuguesa deixa claro que essas pessoas são, antes de mais nada, "brasileiros".

Eu sinceramente ignorava essa batalha entre o Brasil terceiro-mundista e o admirável mundo novo de um Portugal rico e europeu.

Eu moro na Alemanha há quase dois anos. A comparação do que vi em Portugal com o que vivencio aqui é inevitável. Posso afirmar que não há nada de tão moderno ou de tão culto assim na terrinha, e que eu estranhamente senti-me em casa – mas não devido à minha ascendência portuguesa. Os edifícios são mal conservados e há todos os cantos de Lisboa uma atmosfera de charmosa decadência. Ninguém convence os portugueses de que os carros não são naus ou caravelas e que eles não precisam correr ou buzinar tanto. Os motoristas são Vascos da Gama enlouquecidos à procura de um novo caminho para as Índias (ou para a Europa, melhor dizendo).

Portugal é considerado a periferia da Europa. Foram colonizadores em um glorioso e distante passado, mas atualmente não passam de meros e ora colonizados figurantes da União Européia. Ou seja, não estão tão longe assim do Brasil do terceiro mundo. É por isso que os brasileiros incomodam tanto: pura e simples identificação. Far away, so close.


Fado Tropical

Oh, musa do meu fado,
Oh, minha mãe gentil,
Te deixo consternado
Num primeiro abril
Mas não sê tão ingrata
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou

Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal

Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano
uma boa dose de lirismo...
(além da sífilis, é claro)
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas
em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e, sinceramente, chora...

Com avencas na caatinga,
Alecrins no canavial,
Licores na moringa,
Um vinho tropical.
E a linda mulata,
Com rendas do Alentejo,
De quem, numa bravata,
Arrebato um beijo...
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal

Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos, o golpe duro e presto.
De tal maneira que, depois de feito,
Desencontrado, eu mesmo me contesto

Se trago as mãos distantes do meu peito,
É que há distância entre intenção e gesto.
E se o meu coração nas mãos estreito,
Me assombra a súbita impressão de incesto.

Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa,
Mas o meu peito se desabotoa

E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que, senão, o coração perdoa...

Guitarras e sanfonas
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre Trás-os-Montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo.
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um Império Colonial