segunda-feira, outubro 27, 2003

Promete que vai te comer em pé, deitada e de quatro, narra orgasmos incríveis, diz ser um amante sensacional mas tudo fica por isso mesmo. Blá blá blá e nada de coito.

Tática e estratégia

Minha tática é
olhar-te
aprender como tu és
querer-te como tu és

minha tática é
falar-te
e escutar-te
construir com palavras
uma ponte indestrutível

minha tática é
ficar em tua lembrança
não sei como nem sei
com que pretexto
porém ficar em ti

minha tática é
ser franco
e saber que tu és franca
e que não nos vendemos
simulados
para que entre os dois

não haja cortinas
nem abismos

minha estratégia é
em outras palavras
mais profunda e mais
simples
minha estratégia é
que um dia qualquer
não sei como nem sei
com que pretexto
por fim me necessites.

Mário Benedetti
Todas as vezes em que criei vínculos, sofri.
Estupidamente, porém, percebi que também sofro ao não criá-los. O descompromisso acaba se tornando o compromisso de não ser. Essa falsa liberdade encarcera tanto quanto os compromissos reais. Surreal.


A madrugada me surpreendeu de terno e sapato de salto. Indesculpavelmente vestida, sem coragem para um banho.
Há verdades incompartilháveis. Eu queria mesmo ficar sozinha. Preferia o cigarro solitário na madrugada - ridiculamente vestida - a ter de ir dez vezes à toalete para verificar se o delineador continuava intacto, se o rímel não havia escorrido, se o batom não se desbotara pelas tantas vezes que o copo fora à boca na tentativa de evitar frases ambíguas, desenvolvidas para seduzir.
Eu te perdôo por ter puxado o cobertor nas noites frias de inverno. Estendo também esse perdão a todas as vezes em que você não adivinhou os meus desejos secretos, que nem eram tão secretos assim, já que estavam expostos na minha cara, na minha roupa, no meu perfume, no meu jeito de encostar, de mudar os significados das palavras pra que você as compreendesse.

Eu te perdôo por você não ter me ensinado o que eu precisava aprender. Muito embora você soubesse a dimensão das coisas, o sentido delas.

Não guardo rancor. Perdôo os bilhetes que você não respondeu, os convites para jantar que você não fez, as flores que você não mandou, as frases que você não disse, a tua falta de entusiasmo, a tua maneira preguiçosa.

Perdôo a admiração imbecil que você tem por você mesmo.

Comecei a ter o desespero calmo dos que enlouquecem e você percebeu. Somente isso eu não perdôo.

A vida se repete não apenas com suas vogais e consoantes, mas também com os mesmos sujeitos e predicados. Repete- se na sintaxe e na morfologia. Não passa de uma ironia semântica.

São e-mails, fotos, mensagens cuidadosamente estudadas.

Não estou mais acostumada a períodos de silêncio.
Ela amou sempre. Do início ao fim. Ele não a compreendeu. Se a tivesse compreendido, a perderia. Ela sempre saía antes do último ato, tropeçando em palavras tardias.

Morreu várias vezes com o corpo cravado de dúvidas e reviveu sem nenhuma certeza.

Tenta pôr as coisas onde não alcança. Tenta assimilar a felicidade de uma noite, guardar o gosto do beijo, fingir que nada aconteceu e que o resultado não foi assim tão doloroso.

Não quer esquecer, lava o rosto com água fria, joga as roupas que ele não tirou pelos cantos, esparramadas pela cama, coisas misturadas, ressentidas. Adia a angústia, faz cara de mulher satisfeita. Sorri tentando disfarçar o embaraço.

Ele continua a penetrar o corpo, com medo de invadir a alma. Prefere viver com a certeza de dever cumprido, com a convicção de que não se entregou.
Caminha nua pelo quarto. Passa hidratante no corpo. Allure atrás da orelha. Põe o brinco.

Pequenos mistérios. Chega sozinha, joga o cabelo para trás e diz “com certeza”, “muito bem". Entre todas essas palavras escorregadias, um desejo de ser desvendada.

Tenta ser comum. Finge acreditar na teoria de que a vida é assim, vivida aos poucos. Então fuma um cigarro vagarosamente.

Na verdade gostaria de engolir a vida num só trago, num único orgasmo bem-aventurado, mas se contém.

Insuportavelmente quase. Quase revelada, quase oculta, quase desesperada. Busca os vocábulos exatos para não assustar. Discorre sobre as coisas que não tem explicação.

Ele, cada vez mais próximo. Atraído pelo cheiro. Tem tudo o que queima e arde. Ela, o medo de errar. A ansiedade contida em tudo. É preciso ter jeito. A hora escorre pelo corpo, não se pode sair do script, perder o instante ou a seqüência. Arrisca a pele.

Depois se cala e fica num canto qualquer, terrivelmente assustada.

Volta para casa. Tinha de ser mais contida, mais indefesa, mais frágil. Dorme nua e indefesa, como uma menininha.
Ele ainda era uma de suas raízes. Amor de árvore. Dá flores, sombra, versos e sorrisos que aparecem durante o instante que antecede a voz. Também dá olhares não premeditados, palavras espontâneas e gestos desobrigados.

Assim, sem perceber, habituaram-se ao convívio um do outro.

Aos poucos foram se conhecendo, ressalvando alguma coisa aqui e outra ali. Sempre uma situação controlada, palavras medrosas, sentimentos resguardados, música abafada para que nunca deixassem de ser desconhecidos. Tinham condicionamento suficiente para evitar qualquer envolvimento e acreditavam em tudo, embora demonstrassem a ilusão de que não pensavam sobre o assunto.

E cresceu o desejo. Foram cúmplices da mesma vaidade e do mesmo pecado. Tiveram o cuidado de pedir desculpas, tão educados eram. Só que ninguém tinha culpa de nada. Desenharam o futuro e depois apagaram tudo. Sem rasuras.

Alguma coisa dele ficou nela. Uma espécie de sabedoria estranha capaz de intuir coisas impossíveis. E alguma coisa dela ficou nele, um feitiço inocente de mulher febril despida de qualquer malícia. Mulher que pede coisas impossíveis como a hipótese dele lhe adivinhar os sonhos. Mulher que quer experimentar a nostalgia das coisas que não viveu.

Bobagens. Ela percebeu que o havia perdido num momento irritante de equilíbrio. Perdeu o que não teve. Então encarou a realidade. Ele não adivinharia, jamais, aquele sonho. Prosseguiu em sua rotina. Tomou banho, caminhou, desequilibrou-se no salto, abriu portas, cumprimentos, sorrisos, angustiou-se com a própria risada.

O que mais doía era não ter mágoas ou rancores para utilizar como apoio.

A saudade apertou. Um apetite agudo, uma fome de procurar raízes. Tinha um círculo de idéias em desordem. Talvez ele compreendesse. Tinha uma maneira inteligente de compreender as coisas e em algum ponto dentro dele uma minúscula cumplicidade vigiava atenta. Era possível antever seu semblante grave, de profundo conhecedor dos sentimentos, equilibrado, humano até o limite. Depois riria, estragando tudo com ternura e malícia.


A bem da verdade, não sou essa mulher fatal que você pensa que eu sou. Aquelas histórias de sedução foram todas inventadas e esse ar superior, de quem sabe lidar com a vida, é apenas autodefesa.

Aquelas frases filosóficas foram só para impressionar. Eu nem mesmo sei se acredito no que me ensinaram.

Quero tirar os sapatos, desmanchar o penteado, retirar a maquiagem. Quero tirar a máscara de mulher inatingível, de advogada paulistana, mulher forte e determinada. Quero ser mimada. Acalentada até adormecer.

Olha pra mim: às vezes a minha intimidade não tem brilho algum, e você terá que me amar muito para suportar essa minha deficiência.

Quero tirar o casaco, matar o cansaço. Essa jornada dupla me deixa carente. Quero dividir a cama, a mesa, as contas, os sentimentos, meus livros, uma xícara de café, um segredo. Quero falar da minha insegurança. Das minhas marcas de infância, da cachorrinha que tive e que se chamava Suzi, do meu primeiro dia de aula.

Muitas vezes me inventei, e em mais vezes ainda convenci-me das minhas identidades. Sou uma mulher de personalidade, é certo; tenho várias delas.

Administrei minha liberdade, mas não sei o que fazer com ela. Tomei aviões, bebi uísque, troquei o pneu do carro, abri sozinha o zíper do vestido. Decidi o meu destino com tanta segurança!

Agora cá estou, vinte e poucos anos e toda atrapalhada, tentando um cruzar de pernas diferente, um olhar mais grave. Ou seja, voltando à estaca zero: tenho seis anos e não sei o que fazer para agradar.


Aquele homem cabia inteiro dentro dos meus olhos.

Aquele homem cabia dentro dos meus desejos. Desnudo sob lençóis de seda, eu o tragaria como o grande cigarro da minha vida.

Por ele seria capaz de cama, mesa e banho. Mais que isso, comida e roupa lavada. Seria capaz de passar e engomar aquelas camisas brancas uma por uma, enquanto ele me beijasse a nuca achando sensual o meu jeito despojado de dona de casa.

Aí, ele se aproveitaria da minha aparente fragilidade e realizaria suas fantasias de macho atrás de portas e janelas. Será que aquele homem de metro e oitenta fantasiava mulheres frágeis e carentes? Por supuesto que no. Uma rocha inabalável, um homem de alma gelada e impenetrável. Individualista, cheio de si. Um verdadeiro narciso.

Bem, não podia reclamar tanto, até que ele demonstrou interesse. E ainda perguntou se eu estava compreendendo o seu ponto de vista. "Sim! Não!" Atrapalhei-me toda ao dizer o que eu pensava sobre as relações humanas. Mulheres especiais se atrapalham. Os homens, no entanto, demoram muito para fazer essa descoberta.
A maior pena que eu tenho,
punhal de prata,
não é de me ver morrendo,
mas de saber quem me mata.

Cecília Meireles