sexta-feira, fevereiro 24, 2006

"Não há outro homem a quem aventurar-se a falar de memória assente tão mal. Pois praticamente não reconheço em mim vestígio dela, e não creio que haja no mundo uma outra tão prodigiosa em insuficiência. Tenho banais e comuns todas as minhas outras qualidades. Mas nesta creio ser singular e muito raro, e digno de por ela ganhar nome e fama.(...) Em certa medida, consolo-me. Em primeiro lugar porque esse é um mal pelo qual encontrei principalmente o meio de corrigir um mal pior que poderia facilmente ter surgido em mim, ou seja, a ambição, pois é uma falta (a falta de memória) inadmissível para quem se envolve nos negócios do mundo; e porque, como mostram vários exemplos semelhantes do andamento da natureza, esta de bom grado fortaleceu em mim outras faculdades na medida em que aquela se enfraqueceu, e facilmente eu iria deitando e enlaguescendo o meu espírito e o meu discernimento sobre os rastros de outrem, como faz o mundo, sem exercer as suas próprias forças, se as ideias e opiniões alheias estivessem presentes em mim pelo benefício da memória.

E porque as minhas falas são mais curtas, pois o armazém da memória costuma ser mais bem provido de matéria do que o da invenção; se ela me tivesse favorecido, eu ensurdeceria os meus amigos com tagarelices, pois os assuntos despertam essa medíocre faculdade que tenho de manejá-los e aproveitá-los, inflamando e arrebatando as minhas palavras. Isso é lamentável. Experimento-o pela prova que me dão alguns dos meus amigos íntimos: à medida que a memória lhes fornece a coisa inteira e presente, eles recuam tanto a sua narração e tanto a carregam de circunstâncias inúteis que, se a história é boa, sufocam-lhe a excelência; se não é, começamos a maldizer ou o sucesso da sua memória ou o fracasso do seu discernimento."

Michel de Montaigne, in 'Ensaios'

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Abandonei a inocência escolar, a proteção da casa dos meus pais, o conforto dos abraços conhecidos, o meu emprego insatisfatório.

Eu até tive consciência da importância das pessoas e coisas que me cercavam, dos lugares que eu frequentava, dos cheiros familiares, das músicas escutadas à exaustão. Todas essas coisas só se tornaram REALMENTE especiais ao virarem história. Descobri que os grilhões familiares eram na verdade extremamente confortáveis...

Ultimamente, tudo o que tenho feito é ignorar quem não entende, critica, alerta e amedronta. Eu estou aqui, escrutinando cada pedacinho de mim mesma. Quanto aos sensatos da vida, suponho que continuam no mesmíssimo lugar, na mesma decadente resignação.

Primavera na Alemanha



quarta-feira, fevereiro 08, 2006

"O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito - por coragem. Será?"

João Guimarães Rosa, in "Grande Sertão - Veredas"
"- Vede, caro Roberto, o senhor de Salazar não diz que o sensato deve simular. Sugere-vos, se bem entendi, que deve aprender a dissimular. Simula-se o que não se é, dissimula-se o que se é. Se vos gabardes do que não fizestes, sois um simulador. Mas se evitardes, sem fazê-lo notar, mostrar em pleno o que fizestes, então dissimulais. É virtude acima de todas as virtudes dissimular a virtude. O senhor de Salazar está a ensinar-vos um modo prudente de ser virtuoso, ou de ser virtuoso de acordo com a prudência. Desde que o primeiro homem abriu os olhos e soube que estava nu, procurou cobrir-se até à vista do seu Fazedor: assim a diligência no esconder quase nasceu com o próprio mundo. Dissimular é estender um véu composto de trevas honestas, do qual não se forma o falso mas sim dá algum repouso ao verdadeiro.

A rosa parece bela porque à primeira vista dissimula ser coisa tão caduca, e embora da beleza mortal costume dizer-se que não parece coisa terrena, ela não é mais do que um cadáver dissimulado pelo favor da idade. Nesta vida nem sempre se deve ser de coração aberto, e as verdades que mais nos importam dizem-se sempre até meio. A dissimulação não é uma fraude. É uma indústria de não mostrar as coisas como são. E é indústria difícil: para nela ser excelente é preciso que os outros não reconheçam a nossa excelência. Se alguém ficasse célebre pela sua capacidade de camuflar-se, como os atores, todos saberiam que ele não é o que finge ser. Mas dos excelentes dissimuladores, que existiram e existem, não se tem notícia alguma. E notai - acrescentou o senhor de Salazar -, que convidando a dissimular não vos convidamos a permanecer mudo como um parvo. Pelo contrário: deveis aprender a fazer com a palavra arguta o que não podeis fazer com a palavra aberta; a mover-vos num mundo que privilegia a aparência, com todos os desembaraços da eloquência, a ser tecelão de palavras de seda. Se as flechas perfuram o corpo, as palavras podem trespassar a alma."

Umberto Eco, in "A Ilha do Dia Anterior"

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

"Mas ontem, por exemplo, abraçado ao teu corpo enquanto aguardava que a indulgência do remédio me libertasse dos sobressaltos da memória, veio-me à ideia um crepúsculo antigo, em cinquenta ou em cinquenta e um, com os canteiros do jardim regados de fresco, o Senhor Fernando, em camisola interior, a fazer ginástica à varanda, e um reboliço de gatos à porta da cozinha, comigo empoleirado no muro a farejar as brisas de Monsanto e a escutar os cavalos dos monárquicos vencidos que baixavam a serra (conforme me contou a Dona Anita que era menina nessa altura) a caminho das celas da Penitenciária. Não entendo por que motivo, querida, nunca te interessaste pela minha infância: sempre que falo de mim encolhes os ombros, a boca torce-se, as pálpebras prolongam-se de desdém, rugas escarninhas surgem por detrás da franja do cabelo loiro, de modo que acabo por me calar, envergonhado, a colocar os copos, os pratos e os talheres na mesa do almoço, enquanto a tua tia tosse na despensa e o teu pai roda os botões do televisor em busca das estridências da novela. E todavia, Iolanda, logo que adormeces, mal o teu rosto, amolgado na almofada, readquire a inocência do presépio de outrora, tal como te vi, pela primeira vez, na pastelaria à esquina do Liceu, quando os teus dedos sujos de tinta e os teus cadernos escolares me comoveram de uma alegria sem sentido. Meu amor, ouve. Talvez me compreendas no teu sonho, talvez o teu corpo se liberte da ironia a meu respeito e me queira, talvez as tuas pálpebras, agora doces, estremeçam se disser como gostaria que mexesses e me deixasses mexer-te, talvez encostes a mim o tufo de pêlos do teu ventre, e os joelhos se abram devagar sobre uma húmida, lisa, tenra maciez de gruta que aprisiona o meu desejo numa firmeza de nácar. Mas desde o verão que me ignoras, apaixonada por um colega de turma de acne aceso e barba a despontar, que nos visita a pretexto de dúvidas de Geografia ou Matemática e me aperta as falanges, até estalar os ossos, num cumprimento cruel. Reduzido a um vago parente de colete, gravata e farripas grisalhas, incapaz de um pino, incapaz de ler sem óculos, incapaz de correr vinte metros por causa das hesitações do coração, incapaz, em suma, de competir com aquele miúdo borbulhoso, maior do que eu, sem barriga, sem calvície, sem placa, cujos dezoito anos me derrotam, aguardo a noite, numa imobilidade de tarântula, quando o teu corpo, temperado pelo azeite e pelo vinagre do dentífrico e do perfume barato, encolhe a fim de se ajeitar no colchão, quando a cadência do peito se torna sigilosa como a dos barcos, quando os teus lábios, afunilados pelo amuo do sono, sopram um beijo que se me não destina, aguardo a noite, medindo a densidade das trevas pela insónia do teu pai e a bronquite da tua tia do outro lado do tabique, e recomeço a minha história no episódio em que a deixei. Se penso, meu amor, na vilazinha da meia dúzia de chalés tombados, sem proprietário, onde as aranhas fiavam o abandono, em equilíbrio sobre as ravinas e o grito das aves, e a comparo com este apartamento de Alcântara junto à passagem de nível do comboio e aos navios do Tejo que nos roçam as fronhas coroados de delfins, as minhas pernas procuram, sem que me dê conta, o côncavo dos teus joelhos, e comprimo o peito contra as tuas costas numa súplica de protecção que me confunde por me parecer ridículo um homem de quarenta e nove anos em busca de auxílio numa rapariguinha de dezoito ocupada a sonhar com arcanjos de motorizada vestidos de blusão de cabedal, acelerando, para a salvar, do velhote inofensivo que sou, atarantado de timidez e de surpresa."

Antonio Lobo Antunes, in "A Ordem Natural das Coisas"

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Danke, danke, danke.

Laura - Raskin-Mercer

Laura is the face in the misty lights
Footsteps that you hear down the hall
The laugh that floats on a summer night
That you can never quite recall

And you see Laura on the train that is passing through
Those eyes how familiar they seem
She gave your very first kiss to you
That was Laura but she's only a dream