domingo, agosto 24, 2008

"Durante quarenta anos fez o que era necessário fazer. Andou atarefado, e a natureza, que é a besta, mudou-se para uma caixa. Agora essa caixa está aberta. Ser reitor, ser pai, ser marido, ser intelectual, professor, ler livros, dar lições, corrigir textos, dar notas, tudo isso acabou. Evidentemente que já não é a vigorosa besta lúbrica que foi. Mas o que resta da besta, o que resta dessa coisa natural, é com isso que ele está agora em contacto, com o que resta. E sente-se feliz por isso, sente-se grato por estar em contacto com o que resta. Sente-se mais do que feliz: sente-se emocionado, e já está ligado, profundamente ligado a ela, por causa dessa emoção. Não é de família que se trata, a biologia já não lhe serve para nada. Não é família, não é responsabilidade, não é dever, não é dinheiro, não é uma filosofia partilhada ou o amor à literatura, não são grandes discussões de ideias. Não, o que o liga a ela é a emoção. Amanhã descobrem-lhe um cancro e acabou-se. Mas hoje, agora, tem essa emoção."

Philip Roth, in "A Mancha humana"
"Desejo estragar, ou macular definitivamente, sua falsa felicidade, se você se ilude em tê-la. Minha esperança é que ela possa mirrar ou extinguir-se inteiramente, para que você veja o mundo como ele é, ou enlouqueça, ou morra, ou ambas as coisas, pois quase todos, insisto, sobrevivem apenas porque crêem que não são sozinhos. São, sim. Você é sozinho e permanentemente ameaçado, e somente um voluntarismo animalesco lhe faz ver o mundo de maneira diversa.

(…)

Solitários por nascimento, natureza, sentimento e vida, estou seguro de que os indivíduos têm uma curiosidade básica sobre a confirmação secreta da sua sanidade. E, mais ainda, praticam interiormente todos os atos loucos, mesmo os que lhe são na superfície mais repugnantes (…). A maior parte se ilude, acreditando que não sentiria a emoção que levaria ao pensamento e deste à ação, mas não é verdade, porque cada um é tudo isso. Cada um de nós é isso e, se nos diferençamos na prática, devemos creditar ao acaso mais do que à deliberação o fato de nos comportarmos externamente de maneira considerada aceitável ou até elogiável. E por isso insistem tanto em negar que estão sós e assim se transformam em fantoches de valores que lhes impuseram com indispensável violência, pois a realidade não se subordina a ordem alguma."

João Ubaldo Ribeiro, in "Diário do Farol"

sábado, agosto 23, 2008

"Genau die Kraft, die gefehlt hat, um einen Sieg zu erringen braucht man, um eine Niederlage zu verkraften."- Ernst R. Hauschka

"Es gibt Leute, die zum Glücklichsein geboren werden, und andere, die zum Unglücklichkeit bestimmt sind. Ich habe einfach Pech gehabt." - Maria Callas


Sinceramente, não gosto muito de arte. Sinto-me entediada depois de uma ou duas horas dentro de um museu. A pintura que pretendo apresentar aqui, no entanto, "mereceu" a minha atenção.

Trata-se de um quadro da segunda metade do século XVI, cuja autoria é do pintor holandês Pieter Bruegel (1525 - 1569). O título da pintura é "De val van Icarus", ou "A queda de Ícaro".

Um mar cor de turquesa, salpicado de ilhas. À esquerda vê-se um porto. Em primeiro plano encontra-se um camponês trabalhando tranquilamente, arando a terra com a ajuda de um cavalo. Um pouquinho atrás vemos um pastor de olhar pensativo voltado para o céu. Mais para a direita um pescador. Tudo parece estar na mais perfeita ordem, mas esse idílio engana: um outro homem está se afogando a poucos metros desses três. É possível distinguir uma das pernas e uma das mãos, numa cena ridiculamente trágica. Um navio passa por ali e segue tranquilamente o seu caminho em direção ao porto. Nada parece sugerir que o capitão vá desviar a sua rota para salvar o infeliz.

Moral da história: quem cai na água cai sozinho, isolado, abandonado, desesperado, infeliz, perdido e condenado. O afogamento se confunde com a banalidade do cotidiano.

Pretendo continuar escrevendo sobre a derrota. Chega de dar ao tema o mesmo tratamento dado ao sexo na era vitoriana: todo mundo pensa o tempo todo sobre o assunto, mas ninguém fala nada a respeito. Desde quando é tabu falar sobre o fracasso?

Quem não conhece a pergunta, inevitavelmente feita nos primeiros trinta segundos de uma conversa superficial em alguma balada por aí: "E então, o que você faz da vida?". Essa pergunta pode na realidade ser traduzida por "você é tão ou mais bem sucedido do que eu?" Experimente dizer que a sua profissão é manicure ou cobrador de ônibus e contabilize as reações de entusiasmo. Não é necessária uma especialização em estatística para prever o resultado dessa pesquisa.

Não é curioso que fracassar profissionalmente seja uma indecência, enquanto fracassar como mãe ou esposa seja considerado um delito de menor potencial ofensivo?

terça-feira, agosto 19, 2008

O sentido da vida

Eu adorava a mãe da minha melhor amiga de infância: sua doçura, sua eterna amabilidade, sua elegância, sua abnegação. A mãe da Karina cozinhava somente o que agradava ao nosso paladar infantil: macarrão alho e oléo, bifes suculentos. A lancheira da Karina era sempre preenchida com barras de chocolate Kri e toddinho. Já a minha lancheira sempre continha coisas como pão com margarina.

Uma vez a Karina foi passar o dia na minha casa – situação excepcional, já que quase sempre eu era a convidada. Morri de preocupação com relação ao cardápio do almoço e rezei baixinho, pedindo para que minha mãe não resolvesse fazer seu famoso refogado de abobrinha com carne moída. Minhas preces foram atendidas e justamente nesse dia fomos todos almoçar fora.

Para mim era a mãe da Karina acima de tudo. A loirice da mãe da Karina. A inteligência da mãe da Karina. Ela nunca se opunha a que nós brincássemos como e onde quiséssemos. Minha adoração pela mãe da Karina fazia a minha mãe ter acessos enlouquecidos de rancor contra a pobre mulher. Nessas ocasiões, a minha mãe tentava sem muito sucesso enumerar algumas desvantagens da rival: a sujeira da casa, a localização dos móveis, o excesso de maquiagem...

A mãe da Karina infelizmente morreu quando nós tínhamos 12 anos. Por vários anos pensei que eu era a culpada pelo falecimento, por ter querido tão ardentemente que ela fosse a minha mãe e de certa forma invejado a sorte da minha amiga.

Nunca, jamais me orgulhei da minha mãe, nem pensei “co muito feliz por ser sua filha.”

São 29 anos de uma inimizade ininterrupta com uma mulher egoísta, extremamente orgulhosa e de uma ignorância abissal.

O fato da minha mãe ser uma imigrante portuguesa tampouco ajudou. Eu morria de vergonha de ser associada ao país da piada pronta. Minha mãe nunca ia na escola no dia em que os pais e mães eram homenageados, nem às reuniões da Associação de Pais e Mestres. No começo fiquei ressentida, principalmente ao ver todos os demais pais filmando ou tirando fotos dos filhos durante as apresentações teatrais. Hoje em dia sinto-me grata por ter sido poupada da sua presença.

Até hoje não entendo os motivos que levaram o meu pai a escolhê-la. Lembro-me de momentos maravilhosos nas manhãs de domingo, quando nós dois iamos juntos à banca de jornal e comprávamos o Estadão e um gibi do Tio Patinhas. Cedo ou tarde o ar matinal era interrompido pela voz da minha mãe, perguntando o preço das revistas em quadrinhos que havíamos comprado. Quantas vezes eu pensei: “Por favor, pai, por favor, só dessa vez, mande ela calar a boca!”

As discussões tornaram-se com o passar dos anos um pouco mais profundas, mas nunca deixaram de ter um elemento financeiro muito característico. Aprendi na infância que o carinho pode ser medido monetariamente, isto é, pela quantidade de dinheiro investido na relação. Espero sinceramente que um dia eu consiga mudar definitivamente esse padrão de pensamento.

Por toda a minha vida busquei libertação e crescimento, às vezes por linhas tortas. Será possível que eu nunca vá escapar nem do meu passado nem da minha mãe? Mais estranho ainda é pensar que os amigos que tiveram mães refinadas e apoiadoras não se sintam tão amarrados a essas mães, não telefonem, visitem, sonhem ou mesmo pensem nelas com tanta freqüência. Não é essa a tarefa dos bons pais, habilitar os filhos a sair de casa? Já eu tenho que tirar a minha mãe da cabeça várias vezes por dia. Pego o telefone para ligar para ela num ato reflexo, embora sabendo o que me aguarda:

— A Rachel foi promovida. Ela e o seu irmão já assinaram os papéis para o consórcio de um imóvel.

— A filha da Marlene vai se casar na igreja em novembro e também já deu entrada em um apartamento na Vila Mariana.

— A vizinha comprou um carro novo e vai se mudar para outro bairro em breve.

No momento estou lutando com a saudade do Brasil, com uma tese de mestrado em alemão, com aulas de português e com todo o serviço doméstico, do qual minha mãe sempre se gabava e que agora percebo não ser nada tão extraordinário assim. Minha mãe mal sabe ler o português. A única instrução que recebeu foram quatro anos na escola primária da Ilha da Madeira subjugada pela ditadura de Salazar. Mesmo assim, recorro a ela para buscar sentido. Para ser avaliada de que modo? Pelo dinheiro que eu talvez nunca vá ganhar?

Então são esses os seus critérios, mãe?

sábado, agosto 16, 2008


Casamento

Hoje comemoramos três anos de casamento. Ninguém me ensinou nada a respeito na escola, pelo contrário. No curso de alemão não discutimos o assunto. Na faculdade de Direito, tanto no Brasil quanto na Alemanha ou no Iraque, geralmente aprende-se o processo para a dissolução do vínculo. A relação dos meus pais tampouco foi exemplo de sucesso conjugal, ou seja, não cresci assistindo o filme e depois tentei fazer igual em casa. Mesmo assim tenho sido estranhamente bem-sucedida.

Resolvi não esperar pela "pessoa certa", ao menos dessa vez não fui dominada pela incerteza. Prometi amar o meu marido para sempre, nos seguintes termos: "Eu sei que nós dois somos relativamente jovens e que provavelmente vamos viver bastante. Sei que ao longo da minha vida vou encontrar – como talvez já tenha encontrado - dezenas de homens mais ricos, mais bonitos, mais espirituosos e mais inteligentes do que você. Você também fatalmente encontrará – se é que já não encontrou - um monte de mulheres mais bonitas e mais inteligentes do que eu, que ainda por cima tenham a mesma nacionalidade, o mesmo respaldo cultural e a mesma língua materna. Exatamente por isso eu prometo te amar para sempre. Em 15 de agosto de 2005 abri mão dessas dezenas de oportunidades que poderiam surgir. Não quero viver com medo de ser substituída pela sua colega loira e gostosona e pensando insistentemente no futuro do nosso casamento se você não me disser 'eu te amo' todos os dias, assim como quem diz 'bom dia'. Suponho que você também não queira questionar a minha fidelidade sempre que eu me encontrar com algum amigo. Eu prometo te amar, porque só assim poderemos viver em harmonia."

Acho que tem dado tão certo até agora porque ambos sempre estivemos conscientes de que não havíamos escolhido o melhor par possível mundo afora. Tentaríamos simplesmente construir o melhor relacionamento possível com alguém a quem prometemos amar, ainda que essa pessoa não seja virtualmente a nossa "alma gêmea" ou a "pessoa certa". E levamos essa promessa a sério.

sexta-feira, agosto 15, 2008

"Das Vertrackte am Glück ist, dass es einem manchmal in der täuschend echten Verkleidung des Unglücks begegnet, genauso wie das Unglück bisweilen in der verlockenden Maskierung des Glücks daherkommt."

Alexander von Schönburg, in "Die Kunst des stilvollen Verarmens"

"What´s the use for money, if you have to work for it?" - George Bernard Shaw




terça-feira, agosto 12, 2008

Perdi a corrida. Não vou contar minha história, porque ela de qualquer forma jamais seria algo além de um relato medíocre do desemprego, da misantropia, da solidão.

Transformei-me em algo muito menor do que a pessoa que sempre sonhei ser. A absoluta maioria dos meus projetos não deu certo, 99 % dos meus momentos foram esquecidos. Minha vida foi um completo desperdício. Depois de três anos, o fracasso não foi somente esfregado na minha cara: ele é a minha cara.

Ter preferido o fracasso total a manter-me na segurança do insípido - pairando no horizonte seguro dos medíocres que não conhecem nem fracassos nem vitórias - foi um grande erro.

"Deshalb habe ich Angst vor dir, kleiner Mann, unbändige Angst. Denn von dir hängt das weitere Schicksal der Welt ab. Ich habe Angst vor dir, weil du nichts so sehr fliehst wie dich selbst. Du bist krank, sehr krank, kleiner Mann. Es ist nicht deine Schuld; aber es ist deine Verantwortung, dich von deiner Krankheit zu befreien."

Wilhelm Reich, in "Rede an den kleinen Mann"

quinta-feira, agosto 07, 2008

"Há vária gente que não gosta de evocar o passado. Uns por energia, disciplina prática e arremesso. Outros por ideologia progressista, visto que todo o passado é reaccionário. Outros por superficialidade ou secura de pau. Outros por falta de tempo, que todo ele é preciso para acudir ao presente e o que sobra, ao futuro. Como eu tenho pena deles todos. Porque o passado é a ternura e a legenda, o absoluto e a música, a irrealidade sem nada a acotovelar-nos. E um aceno doce de melancolia a fazer-nos sinais por sobre tudo. Tanta hora tenho gasto na simples evocação. Todo o presente espera pelo passado para nos comover. Há a filtragem do tempo para purificar esse presente até à fluidez impossível, à sublimação do encantamento, à incorruptível verdade que nele se oculta e é a sua única razão de ser. O presente é cheio de urgências mas ele que espere. Ha tanto que ser feliz na impossibilidade de ser feliz. Sobretudo quando ao futuro já se lhe toca com a mão. Há tanto que ter vida ainda, quando já se a não tem... "

Vergílio Ferreira, in "Conta-Corrente 5"