quinta-feira, julho 13, 2006

"É a insuficiência do nosso ser que faz nascer a amizade, e é a insuficiência da própria amizade que a faz perecer. Está-se sozinho, sente-se a própria miséria, sente-se necessidade de apoio, procura-se quem lhe favoreça os gostos, um companheiro nos prazeres e nos pesares; quer-se um homem de quem se possa possuir o coração e o pensamento. Então a amizade parece ser o que de mais doce há no mundo; tem-se o que se desejou, logo se muda de ideia. Quando se vê de longe algum bem, ele fixa de início os nossos desejos, e quando se chega a ele, sente-se o seu nada. A nossa alma, de que ele prendia a vista na distância, não pode repousar-se nele quando vê mais adiante: assim a amizade, que de longe limitava todas as nossas pretensões, cessa de limitá-las de perto; não preenche o vazio que prometera preencher; deixa-nos necessidades que nos distraem e nos levam a outros bens.

Então a gente torna-se negligente, difícil, exige-se logo como um tributo as complacências que de início eram recebidas como um dom. É do caráter dos homens apropriar-se a pouco e pouco até das graças de que beneficiam; uma longa posse acostuma-os naturalmente a olhar as coisas que possuem como sendo deles; assim, o hábito persuade-os de que têm um direito natural sobre a vontade dos seus amigos. Gostariam de possuir um título que lhes permitisse governá-los; quando essas pretensões são recíprocas, como se vê com frequência, o amor-próprio irrita-se e grita dos dois lados, produz um azedume, friezas e amargas explicações, etc. Encontram-se, assim, mutuamente, defeitos que antes se escondiam; ou cai-se nas paixões que tiram qualquer atrativo à amizade, como as doenças violentas tiram o atrativo pelos mais doces prazeres. Assim, os homens mais extremados não são os mais capazes de uma amizade constante. Em nenhum outro lugar a encontramos mais viva e mais sólida do que nos espíritos tímidos e sérios, cuja alma moderada conhece a virtude; pois ela alivia o seu coração oprimido sob o mistério e sob o peso do segredo, distende-lhes o espírito, alarga-o, torna-os mais confiantes e mais vivos, mescla-se aos seus divertimentos, aos seus negócios e aos seus prazeres misteriosos: é a alma de toda a sua vida. Os jovens são também muito sensíveis e muito confiantes; mas a vivacidade das suas paixões distrai-os e torna-os volúveis. A sensibilidade e a confiança estáo desgastadas nos anciãos, mas a necessidade aproxima-os e a razão é o laço que os une: alguns amam mais ternamente, outros mais solidamente."

Luc de Clapiers Vauvenargues, in "Das Leis do Espírito"

quinta-feira, julho 06, 2006

"Cada um deve ser e proporcionar a si mesmo o melhor e o máximo. Quanto mais for assim e, por conseguinte, mais encontrar em si mesmo as fontes dos seus deleites, tanto mais será feliz. Com o maior dos acertos, diz Aristóteles: 'A felicidade pertence aos que se bastam a si próprios.' Pois todas as fontes externas de felicidade e deleite são, segundo a sua natureza, extremamente inseguras, precárias, passageiras e submetidas ao acaso; podem, portanto, estancar com facilidade, mesmo sob as mais favoráveis circunstâncias. Isso é inevitável, visto que não podem estar sempre à mão.

Na velhice, então, quase todos se esgotam necessariamente, pois abandonam-nos o amor, o gracejo, o prazer das viagens e a propensão para a sociedade. Até os amigos e parentes nos são levados pela morte. É quando, mais do que nunca, importa saber o que alguém tem em si mesmo. Pois isso se conservará por mais tempo. Mas também em cada idade isso é e permanece a única fonte genuína e duradoura da felicidade. Em qualquer parte do mundo, não há muito a buscar: a miséria e a dor preenchem-no, e aqueles que lhes escaparam são espreitados em todos os cantos pelo tédio. Além do mais, via de regra, impera no mundo a malvadez, e a insensatez fala mais alto. O destino é cruel e os homens são deploráveis. "

Arthur Schopenhauer, in "Aforismos para a Sabedoria de Vida"

domingo, julho 02, 2006

"Devemos a quase totalidade das nossas descobertas às nossas violências, à exacerbação do nosso desequilíbrio. Mesmo Deus, na medida em que nos intriga, não é no mais íntimo de nós que o discernimos, mas antes no limite exterior da nossa febre, no ponto preciso em que, confrontando-se a nossa ira com a sua, se produz um choque, um encontro tão ruinoso para Ele como para nós. Ferido pela maldição que se liga aos atos, o violento só força a sua natureza, só se ultrapassa a si próprio, para a ela regressar, furioso e agressor, seguido pelas suas empresas, que o punem por as ter feito nascer. Não há obra que não se volte contra o seu autor: o poema esmagará o poeta, o sistema o filósofo, o acontecimento o homem de ação. Destrói-se quem, respondendo à sua vocação e cumprindo-a, se agita no interior da história; apenas se salva aquele que sacrifica dons e talentos para, desprendido da sua qualidade de homem, poder repousar no ser. Se aspiro a uma carreira metafísica, não posso por preço algum conservar a minha identidade: terei de liquidar o menor resíduo que dela possa guardar; se, pelo contrário, escolho a aventura de um papel histórico, a tarefa que me cabe é a de exasperar as minhas faculdades até explodir eu próprio com elas. Parece-se sempre pelo eu que se assume: ter um nome é reivindicar um modo preciso de ruína."

Emil Cioran, in "Pensar Contra Si Próprio'"