quarta-feira, novembro 30, 2005

"- Aqui o céu é tão estranho, é quase sólido, parece nos proteger do que está atrás.
- O que há atrás?
- Nada, só a noite."

Bernardo Bertolucci, in "O céu que nos protege"
"Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens havia perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido - sem saber porquê. E então, porque o espírito humano tende naturalmente para criticar porque sente, e não porque pensa, a maioria desses jovens escolheu a Humanidade para sucedâneo de Deus. Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre à margem daquilo a que pertencem, nem vêem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado. Por isso nem abandonei Deus tão amplamente como eles, nem aceitei nunca a Humanidade. Considerei que Deus, sendo improvável, poderia ser, podendo pois dever ser adorado; mas que a Humanidade, sendo mera idéia biológica, e não significando mais que a espécie animal humana, não era mais digna de adoração do que qualquer outra espécie animal. Este culto da Humanidade, com seus ritos de Liberdade e Igualdade, pareceu-me sempre uma revivescência dos cultos antigos, em que animais eram como deuses, ou os deuses tinham cabeças de animais. Assim, não sabendo crer em Deus, e não podendo crer numa soma de animais, fiquei, como outros da orla das gentes, naquela distância de tudo a que se comumente se chama a Decadência. A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar, pararia."

Fernando Pessoa, in "O livro do dessassosego"

segunda-feira, novembro 28, 2005

Schatzi,

O seu primeiro ponto, sobre as exigências que lhe fazem sobre a coerência de idéias, é algo bastante comum. O que eu posso lhe dar é o testemunho da minha própria existência: sempre mudei. Já fui católica, espírita, comunista, social-democrata, tudo. Mudar é necessário, pois a cada fase alcançamos estágios que freqüentemente negam as antigas convicções. A cada momento a sua consciência se amplia, se você for uma pessoa saudável e capaz de auto-desenvolvimento.

Quando mudar, então? Quando sua convicção interior lhe recomendar que mude. O processo de aprendizado é algo muito solitário e ninguém de fora pode fazer muito, exceto lhe colocar diante dos olhos os produtos mais refinados do conhecimento humano – das letras e das artes. Se esses conhecimentos poderão ser digeridos e transformados em saber, é uma questão em aberto, que varia de indivíduo para indivíduo.

O fato é que nem todas as verdades são para todos os ouvidos.

O que o politicamente correto deseja é que você permaneça usando a linguagem e os cacoetes de um adolescente por toda a vida; é essa a tal coerência que lhe exigem. Portanto, jamais seja coerente. Esqueça essa exigência burra e infantil. Contrarie o senso comum.
"Levando-se em conta nossa pitoresca realidade contemporânea, até que a quantidade de besteiras ditas e escritas sobre o controvertido aniversário do Brasil não dá para surpreender. O que chateia um pouquinho é que diversas dessas besteiras continuarão a perseguir-nos pela vida afora, algumas talvez trazendo conseqüências indesejadas. A principal delas, naturalmente, é a de que o Brasil começou em 1500, quando nem mesmo no nome isso aconteceu, posto que éramos uma ilha quando os portugueses primeiro viram as terras daqui e, durante muito tempo, o Brasil que duvidosamente existia não tinha nada a ver com o Brasil de hoje.

A impressão que se tem é que, do povo às autoridades e mesmo aos entendidos, acha-se que o Brasil já estava no mapa, com as fronteiras e características atuais, no momento em que Cabral chegou. Teria tido até um nome nativo, já proposto, pelos mais exaltados, para substituir 'Brasil': Pindorama, designação supostamente dada pelos índios ao nosso país. Não sou historiador, mas também não sou tão burro assim para acreditar que os índios tinham qualquer noção geopolítica, ou alguma idéia de que pertenciam a um "país" chamado Pindorama. Não havia qualquer país, é claro, nem sequer a palavra Pindorama devia fazer sentido para os ocupantes que os portugueses encontraram aqui, se é que ela era usada mesmo. No máximo, significaria o único mundo conhecido deles. Parece assim que os nossos índios administravam impérios e cidades como os dos maias, astecas ou incas, quando na verdade, que perdura até hoje, viviam neoliticamente e a maioria esgotava os numerais em três - era o máximo que conseguiam contar e o resto se designava como 'muito'.

Como corolário disso, vem a tese de que fomos invadidos. Com perdão da formulação pouco ortodoxa da pergunta, quem fomos invadidos? Todos nós, salvante os mais ou menos 400 mil índios que sobraram por aí, somos descendentes dos invasores, inclusive os negros, que não vieram por livre e espontânea vontade, mas também não viviam aqui na época de Cabral e hoje constituem parte indissolúvel de nossa, digamos assim, identidade. Imagino que haja quem pense que, diante de uma delegação portuguesa, algum diplomata ou general índio tenha argumentado que se tratava da ocupação ilegal de um Estado soberano do Oiapoque ao Chuí e que aquilo não estava certo, cabendo talvez a intervenção das Nações Unidas.

Se a História tivesse tomado rumos um pouquinho diferentes, nossa área hoje podia estar subdividida em vários países diferentes, uns falando português, outros espanhol, outros holandês, outros francês. Do Tratado de Tordesilhas às capitanias hereditárias, aos movimentos separatistas e à ação do barão do Rio Branco, muita coisa se passou para que nos tenhamos tornado o Brasil que somos hoje. Ninguém chegou aqui e descobriu o Brasil já pronto e acabado (se é que podemos falar assim mesmo agora), isto é uma perfeita maluquice. O Brasil, é mais do que óbvio, se construiu lentamente e às vezes aos trancos e barrancos.

Compreende-se que nativos de países como o Peru, o México e outros, notadamente na América Central, se sintam invadidos. Até hoje são numerosos e discriminados, muitos nem falam espanhol e, quando aportaram os conquistadores, tinham cidades maiores do que as européias. Mas nós? Quem, com a notável exceção do amigo pataxó e da jovem senhora xavante que ora me lêem, foi aqui invadido? Vamos supor, já jogando no terreno da absoluta impossibilidade, que o chamado mundo civilizado ignorasse a existência destas terras até hoje. Teríamos aqui, não o Brasil, mas uns 4 milhões de nativos de beiço furado e pintados de urucu e jenipapo (nada contra, até porque furamos as orelhas, nos tatuamos e usamos batom, é uma questão de estilo), que não falavam as línguas uns dos outros, matavam-se entre si com alguma regularidade e cuja tecnologia não era propriamente da era informática. Brasil mesmo, nenhum.

Mas está ficando politicamente correto, suspeito eu que por motivos incorretíssimos, abraçar a tese da invasão do Brasil. 'Nós fomos invadidos, fomos invadidos!', grita em português brasileiro, a única língua que sabe, um manifestante mulato, em Porto Seguro. Será possível que não se perceba a vastidão dessa sandice? Daqui a pouco - e aí é que mora o perigo - entra na moda de vez e os resquícios das nações indígenas que ainda subsistem deverão aspirar à soberania sobre os territórios que ocupam. Como na Europa Oriental, cada etnia quererá ter seu Estado e sua autonomia, com bandeira, hino, moeda (dólar, para facilitar) e passaporte. Que beleza, forma-se-á por exemplo, depois de um plebiscito entre os índios, o Estado Ianomâmi, completamente independente e ocupando área bem maior do que muitos outros países do mundo juntos, reconhecido pelas organizações internacionais e protegido pelo grande paladino da liberdade dos povos, os Estados Unidos, que mandariam missionários e ajuda econômica e tecnológica e, dessa forma, investiriam desinteressadamente numa área tão pobre em recursos econômicos e que tão pouca cobiça desperta, como a Amazônia. E, se protestássemos, a Otan bombardearia o Viaduto do Chá, a ponte Rio-Niterói e o Elevador Lacerda, como advertência.

Cometeram-se e cometem-se crimes inomináveis contra os índios, que devem ter seus direitos assegurados. Também se cometeram e cometem crimes contra grande parte dos brasileiros não-índios, outra vergonha que precisa ser abolida. Mas isso não tem nada a ver com a tal invasão, assim como a outra série de besteiras intensamente veiculada, segundo a qual, se não houvéssemos sido colonizados pelos portugueses, estaríamos em melhor situação, assim como estão em melhor situação a antiga Guiana Inglesa, o Suriname, a Indonésia, a Nigéria, a Somália, o Sudão e um rosário interminável de ex-colônias européias, quando na verdade se trata de um caso claro de o buraco achar-se bem mais embaixo. Como é que se diz "babaquice" em tupi-guarani?"


João Ubaldo Ribeiro, in "O Estado de S. Paulo", 23 de Abril de 2000
Caro Freud, além do desejo de prazer e da vontade de poder existe no homem uma força motivadora ainda mais intensa, a "vontade de sentido". A alma humana pode suportar tudo, exceto a falta de significado. Se você tem um porquê, então suporta todos os comos. Essa neurose marcada pelo sentimento de absurdo e vacuidade você não diagnosticou.
Há alguns anos eu acreditava no meu destino funesto. Hoje conheço o meu destino banal. Há alguns anos eu queria a Europa; hoje eu me contentaria, sem pormenores ou perguntas, com uma vida medíocre no subúrbio de São Paulo, dona de um vagaroso escritório de advocacia na Rua Sete de Abril e de um apartamento na Vila Mariana.

Enquanto eu não tinha a consciência de que era ridícula, pude ter sonhos em grande escala. Hoje, que sei quem sou, só me restam os sonhos que delibero ter. O ridículo é o coice da inteligência; há muito que da inteligência não possuo senão o coice.

domingo, novembro 27, 2005

"Numa de nossas ocasionais conversas fiadas, ontem de noite disse-me o porteiro: ‘rato depois de velho vira morcego’. Olhei-o atentamente. Era um velho porteiro. Não estava brincando. Devia ser teimoso como todos os velhos. Seria pedante da minha parte tentar convencê-lo de que sua História Natural não o era muito... Deixá-lo! Afinal, por que os ratos velhos não haveriam de virar morcegos, da mesmíssima forma que as velhas solteironas viram postes de fim de linha? Da mesma forma que os meus leitores desatentos viram fumaça inconsistente e os leitores incrédulos não viram nada... (E daí, você viu ou não viu?!) Pois é uma grande coisa escutar sem contradizer. Me lembro que, quando menino, nada retruquei quando uma velha cozinheira preta me assegurou que seria muito, muito rica no Céu... Seria loira, também? Já não me lembro. E, em criaturas de outro estágio cultural, também existem crenças de que não me seria lícito duvidar. Imaginem se, por acaso, com os meus argumentos, eu conseguisse destruí-las! Que teria para lhes dar em troca?”

Mario Quintana, in "Caderno H"
“A vida é um caos, uma selva, uma confusão. O homem se perde nela. Mas sua mente reage diante dessa sensação de naufrágio e perda: trabalha para encontrar, na selva, ‘vias’, ‘caminhos’; isto é, idéias claras e firmes sobre o Universo, convicções positivas a respeito do que são as coisas e o mundo. O conjunto, o sistema delas, é a cultura no sentido verdadeiro da palavra; portanto, tudo ao contrário de ornamento. Cultura é o que se salva do naufrágio vital, o que permite ao homem viver sem que sua vida seja uma tragédia sem sentido ou um aviltamento radical.”

José Ortega y Gasset, in "Missão da Universidade"
“Será justo ou razoável que o grande número de vozes opostas à finalidade suprema do governo escravize o menor número, que quer ser livre? Se a força tiver de decidir, mais justo será, sem dúvida, que o número menor obrigue o maior a conservar a sua liberdade (o que não seria fazer-lhe injustiça) do que o grande número, para satisfação da sua baixeza, compelir com violência o número menor a compartilhar o jugo com ele. Aqueles que não procuram senão a justa liberdade sempre têm direito a ela, por mais numerosas que sejam as vozes em contrário.”

John Milton
“Naquela época comecei a imaginar que as imagens vagam constantemente do consciente para o inconsciente e vice-versa. Mas algumas mergulham tão profundamente no inconsciente que não conseguem encontrar o caminho de volta para a consciência. A pergunta que me interessava era: como morre uma imagem? Ela se apaga como uma brasa que se consome lentamente ou como uma vela que se apaga num sopro? Aos poucos ou de uma vez? Depois de uma longa e penosa agonia ou subitamente? A princípio concordei com o poeta: o processo do esquecimento me parecia ser como um desabamento instantâneo, mas que tinha sido longamente preparado: existia algo – não existe mais. Lembro-me de que, utilizando as séries mnemônicas de Ebbinghaus, tentei até calcular o instante do desaparecimento, do apagamento, da desintegração desta ou daquela imagem. Mas logo minha atenção foi atraída para a questão das emoções esquecidas. Isto é superinteressante: uma mulher tal encontra-se n vezes com um homem tal e durante os encontros ambos sentem uma certa emoção; mas a tal mulher vai ao encontro n° n+1 com o tal homem e a emoção não acontece. Naturalmente, o tal vai tentar de todas as maneiras fingir e vai até mesmo revistar minuciosamente sua alma, quando estiver sozinho, tentando achar o que perdeu. Mas tudo em vão: recordar a imagem da mulher que partiu é possível, mas recordar um sentimento que se foi é totalmente impossível: a lagartixa fugiu, deixando na sua mão a cauda; a imagem e a emoção se dissociaram. Ao estudar o processo de esfriamento, que transforma o ente amado num ser odioso, não pude resistir às analogias: para mim logo ficou evidente que existe algo em comum entre o processo de esfriamento da paixão e, digamos, o do resfriamento de um banal pedaço de enxofre. Ao retirar calorias do enxofre, fazemos seus cristais passarem de um sistema para outro, ou seja, causamos a mudança de sua forma e de seu aspecto. Não apenas isso: está provado que um elemento químico como o fósforo, por exemplo, durante um resfriamento gradual, não só muda sua formação cristalina e sua cor, passando do violeta ao vermelho e do vermelho ao negro, como também – numa determinada etapa do resfriamento – perde totalmente qualquer forma, descristaliza-se torna-se amorfo. A questão é captar esse momento do desaparecimento da forma... Porque, se é possível observar o segundo em que um pedaço cintilante de carbono, que chamamos de diamante, transforma-se no vulgar carvão, que evitamos com medo de nos sujar, por que razão não poderíamos assistir ao momento em que ‘eu amo’ transforma-se em...?”

Sigismund Krzyzanowski, in "O marcador de página"
“Quando te encontras na base de um importante maciço montanhoso, estás longe de conhecer toda a sua diversidade; não tens nenhuma idéia das alturas que se ergueram por trás do seu cimo ou por trás daquele que te parece ser o cimo, não suspeitas nem o perigo dos abismos nem os confortáveis assuntos ocultos entre os rochedos. É apenas se sobes e se persegues o teu caminho que se revelam pouco a pouco a teus olhos os segredos da montanha, alguns que esperavas, outros que te surpreendem, uns essenciais, outros insignificantes, tudo isso sempre e unicamente em função da direção que tomares; e nunca te revelarão todas. O mesmo acontece quando te encontras diante de uma alma humana.”

Arthur Schnitzler


“É absolutamente desnecessário e nem mesmo desejável que você argumente a meu favor; ao contrário, uma certa dose de curiosidade – como se você estivesse olhando para uma planta exótica a partir de certa distância irônica – parece-me uma atitude incomparavelmente mais inteligente a meu respeito.”

Nietzsche, em carta a seu amigo Carl Fuchs
“A democracia tem pelo menos um mérito, a saber, que um representante do povo não pode ser mais idiota que seus eleitores, já que, por mais idiota que seja, os outros são necessariamente mais idiotas ainda por tê-lo eleito.”

Bertrand Russell, in "A conquista da felicidade"
"Nasci subversivo. A começar por mim - meu principal motivo de insatisfação. "

Miguel Torga
“O especialista serve-nos para concretizar energicamente a espécie e fazer ver todo o radicalismo da sua novidade. Porque outrora os homens podiam dividir-se, simplesmente, em sábios e ignorantes, em mais ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser submetido a nenhuma destas duas categorias. Não é um sábio, porque ignora formalmente o que não entra na sua especialidade; mas tampouco é um ignorante, porque é “um homem de ciência” e conhece muito bem a sua fração de universo. Devemos dizer que é um sábio ignorante, coisa sobremodo grave, pois significa que é um senhor que se comportará em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem na sua questão especial é um sábio.”

José Ortega y Gasset, in "A rebelião das massas."
”Não sei se sofri na hora. Mas sei que venho sofrendo destas horas a vida inteira. Ali eu estava sendo mutilado e reduzido a um pedaço de mim mesmo, sem perceber, como o paciente anestesiado que não sente quando amputam sua mão. Depois a ferida cicatriza, mas a mão perdida é dor permanente e renovada, cada vez que a intenção de um gesto não se pode completar.”

Pedro Nava, in "Baú de ossos"

sábado, novembro 26, 2005

"Nem agüentaria dobrar mais momentos, nesta festa aniversária – dele, a octogésima, que seria hoje, no plano terreno. Tanto tempo a esperei e fiz que esperásseis. Relevai-me.

Foi há mais de 4 anos, a recém. Vésper luzindo, ele cumprira. De repente, morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas. Morreu, com modéstia. Se passou para o lado claro, fora e acima de suave ramerrão e terríveis balbúrdias.

Mas – o que é um pormenor de ausência. Faz diferença?

‘Choras os que não devias chorar. O homem desperto nem pelos mortos nem pelos vivos se enluta’. – Krishna instrui Arjuna, no Bhagavad Gita. A gente morre é para provar que viveu. Só o epitáfio é fórmula lapidar. Elogio que vale, em si, perfeito único, sumário.

Alegremo-nos, suspensas ingentes lâmpadas. E: ‘Sobe a luz sobre o justo e dá-se ao teso coração alegria!’ – desfere então o Salmo. As pessoas não morrem, ficam encantadas.

Soprem-se as oitenta velinhas."

Guimarães Rosa
"A grande e decisiva arma é a ignorância. É bom, dizia Sigisberto, no seu jantar de aniversário, que eles nada saibam, nem ler, nem escrever, nem contar, nem pensar, que considerem e aceitem que o mundo não pode ser mudado, que este mundo é o único possível, tal como está, que só depois de morrer haverá paraíso, o padre Agamedes que explique isto melhor, e que só o trabalho dá dignidade e dinheiro, porém não têm de achar que eu ganho mais do que eles, a terra é minha, quando chega o dia de pagar impostos e contribuições, não é a eles que vou pedir dinheiro emprestado, que aliás sempre foi assim, e será, se não for eu a dar-lhes trabalho, quem o dará, eu e eles, eu que sou a terra, eles que o trabalho são, o que for bom para mim, bom para eles é, foi Deus que quis assim as coisas, o padre Agamedes que explique melhor, em palavras simples que não façam mais confusão à confusão que têm na cabeça, e se o padre não for suficiente, pede-se aí a guarda que dê um passeio a cavalo pelas aldeias, só a mostrar-se, é um recado que eles entendem sem dificuldade. Mas diga-me, senhora mãe, bate também a guarda nos donos do latifúndio, Credo, que esta criança não regula bem da cabeça, onde é que tal se viu, a guarda, meu filho, foi criada e sustentada para bater no povo, Como é possível, mãe, então faz-se um guarda só para bater no povo, e que faz o povo, O povo não tem quem bata no dono do latifúndio que manda a guarda bater no povo, Mas eu acho que o povo podia pedir a guarda que batesse no dono do latifúndio, Bem digo eu, Maria, que esta criança não esta em seu juízo, não a deixes andar por aí a dizer estas coisa que ainda temo trabalhos com a guarda.

O povo fez-se para viver sujo e esfomeado. Um povo que se lava é um povo que não trabalha, talvez nas cidades, enfim, não digo que não, mas aqui no latifúndio, vai contratado por três ou quatro semanas para longe de casa, e meses até, se assim convier a Alberto, e é ponto de honra e de homem que durante todo o tempo do contrato se não lave nem cara nem mãos, nem a barba se corte. E se o fizer, hipótese ingênua de tão improvável, pode contar com a troça dos patrões e dos próprios companheiros. É esse o luxo da época, gloriarem-se os sofredores do seu sofrimento, os escravos da escravidão. É preciso que este bicho da terra seja bicho mesmo, que de manhã some a remela da noite à remela das noites, que os sujos das mãos, da cara, dos sovacos, das virilhas, dos pés, do buraco do corpo, seja o halo glorioso do trabalho no latifúndio, é preciso que o homem esteja abaixo do animal, que esse, para se limpar, lambe-se, é preciso que o homem se degrade para que não se respeite a si próprio nem aos seus próprios.

(...)

Quando estes casamentos se fazem, às vezes já vem um filho na barriga. Deita o padre a bênção a dois e ela cai sobre três, conforme se vê pelo redondo da saia, às vezes empinada já. Mas mesmo quando assim não é, vá a noiva virgem ou desvirgada, muito de estranhar será passar um ano sem filho. E, quando deus quer, é um fora, outro dentro, mal a mulher pariu, logo ocupa. É uma brutidão de gente, ignorantes, piores que animais, que esses têm seu cio e seguem as leis da natureza. Mas estes homens chegam do trabalho ou da taberna, enfiam-se no catre, esquece-os o cheiro da mulher ou o rescaldo do vinho ou o apetite da a fadiga e passam-lhe para cima, não conhecem outras maneiras, arfam, brutos sem delicadeza, e lá deixam a seiva a abeberar nas mucosas, nessa trapalhada de miudezas de mulher que nem um nem outro entendem. Bem está isto, que não é fazê-los em mulheres alheias, mas a famílias cresce, encheram-se de filhos, não tiveram cuidado, Mãe, tenho fome, a prova de que Deus não existe é não ter feito os homens carneiros, para comerem as ervas dos valados, ou porcos, para a bolota. E se mesmo assim bolotas e ervas comem, não pode fazer em sossego, porque l’s estão o guarda e a guarda, de olho fito e espingarda fácil, e se o guarda em nome da propriedade de Norberto, se não ensaia nada para mandar tiro a uma perna ou tiro que mate mesmo, a guarda que o mesmo também faz quando lhe dão ordem ou sem esperar por ela, tem os mais benignos recursos de prisão, multa e sova entre quatro paredes. Mas isto, senhores, é umacesta de cerejas, tira-se uma, vêm três ou quatro agarradas, e não falta por aí latifúndio que tenha o seu cárcere privado e o seu código penal próprio. Nesta terra faz-se justiça todos os dias, onde que iríamos parar se a autoridade faltasse.

Cresce a família, mesmo morrendo muito infantes, de suas doenças de caganeira líquida, desfazem-se em merda os podres anjinhos e extinguem-se como pavios braços e pernas mais gravetos que outra coisa, e a barriga inchada, e estão assim até que chegada a hora, abre pela última vez os olhos só para verem ainda a luz do dia, quando não acontece morrerem as escuras, no silêncio do casebre, e quando a mãe acorda dá com o filho morto e lá começam os gritos, sempre os mesmos, que estas mães a quem morrem os filhos não são capazes de inventar nada, estupores. Quando aos pais, estes ficam secos, e no dia seguinte vão à taberna com o ar de quem vai matar alguém ou alguma coisa. Voltam bêbedos e não matam nada e nem ninguém.

(...)

Ia a mulher ao merceeiro e requeria, Faz-me o favor, fie-me lá o resto do avio porque esta semana o meu marido não ganhou nada por não haver trabalho. Ou ainda, pondo de vergonha os olhos no balcão, como quem não tem outra moeda com que pagar, Senhor, o meu marido para o Verão já ganhará mais ordenado, depois faz contas consigo e paga-lhe o atrasado. E o merceeiro, batendo com punho na costaneira, respondia, Essa conversa já eu ouço a muito tempo, depois passa o Verão e fica cá o cão a ladrar à mesma, as dívidas são cães, tem graça esta, quem teria sido o primeiro a lembrar-se de tal, isto é um povo de invenções miúdas e necessitadas, imagine-se o rol do merceeiro ou do padeiro, ali escrito em grossos números, a lápis, tanto aquele, tanto este, um cachorro pequeno, todo felpa, pode crescer, e esta fera de dentuça como o lobo, dívida grossa já do passado ano, ou paga ou corto-lhe o fiado, Mas os meus filhos têm fome e as doenças, o meu homem sem trabalho, não tem o dom de nos venha, Quero lá saber, só leva depois de pagar. Ladram por toda esse terra os cães, ouvimo-los às portas, vêm atrás de quem não pagou, mordendo-lhe nas canelas, mordem-lhe na alma que o merceeiro venha à rua e diz para quem o quer ouvir, Diga lá ao seu marido, o resto já se sabe. Há quem espreite pelos postigos para ver quem é a da vergonha, são crueldades de pobre, hoje tu, amanhã eu, não se pode levar a mal.

Quando o homem se queixa, alguma coisa lhe dói. Queixemo-nos pois desta ferocidade sem nome, e é pena que não tenha, Que vai ser de nós hoje, só com esse dinheiro, e as semanas tão atrasadas, a merceeiro não fia, de cada vez lá vou, ameaça que nos levanta o crédito, nem um tostão mais, Mulher, vai lá experimentar, isso são palavras da boca para fora, o homem não tem nenhuma pedra no lugar do coração, Eu sozinha não vou, que já não tenho cara de entrar naquela porta, só se tu fores comigo, Então vamos os dois, mas um homem não muito para estas coisas, o seu dever é ganhar-lo, fazê-lo render é com a mulher, além de que as mulheres são habituadas, protestam, juram, regateiam, fazem choradeira, capazes até de se atirarem para o chão, aí o copo de água que a pobrezinha teve um ataque, e um homem vai, mas vai a temer, porque devia ganhar e não ganha, porque devia governa a família e não governa, Senhor padre Agamendes, como posso eu cumprir o que prometi quando casei, diga-me lá. Chegamos à loja e estão outros fregueses, uns saem outros entram nem todos de compra pacífica e nós vamos ficando para trás, aqui neste canto, ao pé da saca do feijão, mas cuidado não pense ele que viemos para o roubar. Não há mais fregueses, aproveitemos agora, então avanço eu que sou homem, tenho as mãos a tremer, Senhor José, fazia-me o favor de aviar, mas olhe que esta semana não lhe posso pagar o avio todo, porque tive semana ruim, depois em ganhando melhor ordenado pago-lhe tudo, esteja descansado, que não lhe fico a dever nada. Diga-se agora que estas palavras não são novas, já foram ditas na página de trás, ditas em todo o livro do latifúndio, como se haveria de esperar que a resposta fosse diferente, Não senhor, não lhe fio mais nada, mas antes que tal resposta fosse dada, a mão do merceeiro recolheu, foi um rapa, o dinheiro todo que para o abrandar eu pusera em cima do balcão e depois é que respondeu. E eu disse, com toda a calma que podia, que Deus sabe qual, que pouca era, Senhor José, não me faça uma coisa destas, então o que vou eu dar de comer aos meus filhos, tenha dó de mim E ele disse, Não quero saber, não lhe fio mais nada, por favor, ao menos dê-me o avio no valor do dinheiro que me tirou, só para remediar, para dar alguma coisa de comer aos meus filhos, até que arranje outro rumo. E ele disse, Não lhe posso fiar mais nada, esta quantia que recebi nem dá para a quarta parte do que me deve. Deu um soco no balcão, desafia-me, e eu vou bater-lhe, dar-lhe com a rasoira do alqueire, ou espetar-lhe a faca, sim, a navalha, esta lâmina curva, esta adaga de mouro, Aí homem que de desgraças, olha os nossos filhos, não faça caso, senhor José, não leve a mal, isto é desespero do pobre. Sou puxado até à porta, Mulher, larga-me que eu mato esse malandro, mas vai-mi o pensamento pensando, não mato, não sei matar, e ele diz-me, lá de dentro, Se eu fiar a toda a gente e não me pagarem, como é que eu vivo. Todos temos razão, quem é o meu inimigo.

José Saramago, in "Levantado do chão"
"Muita gente já tinha chegado de férias e acho que havia mais ou menos um milhão de pequenas por ali, sentadas ou em pé, esperando os namorados. Garotas de pernas cruzadas, garotas de pernas descruzadas, garotas com pernas fabulosas, gadortas com pernas pavorosas, garotas que pareciam boazinhas, garotas que, se a gente fosse conhecer, ia ver que eram umas safadas. Era realmente uma paisagem interessante.

De certo modo, também era meio deprimente, porque a gente ficava pensando no que ia acontecer com todas elas. Quer dizer, depois que terminassem o ginásio e a faculdade. A maioria ia provavelmente casar com uns bobalhões.

Esses sujeitos que vivem dizendo quantos quilômetros fazem com um livro de gasolina. Sujeitos que ficam doentes de raiva, igualzinho a umas crianças, se perdem no golfe ou até mesmo num jogo besta como pingue-pongue. Sujeitos que são um bocado perversos. Sujeitos chatos para burro.

Mas é preciso ter cuidado com isso, com essa mania de chamar certos caras de chatos. Não entendo bem os chatos. Juro que não. No Elkton Hills, durante uns dois meses fui companheiro de quarto dum garoto, o Harris Macklin. Ele era muito inteligente e tudo, mas era um dos maiores chatos que já encontrei na minha vida.

Tinha uma dessas vozes de taquara rachada e praticamente não parava nunca de falar. Não havia jeito de se calar, e o pior de tudo é que, em primeiro lugar, nunca dizia uma única coisa que a gente tivesse interesse de ouvir.

Mas tinha uma coisa que ele fazia como ninguém: o filho da puta assoviava como gente grande. Ele ficava fazendo a cama ou pendurando seus trecos no armário - vivia pendurando alguma coisa no armário, me deixava maluco - e, quando não estava tagarelando com aquela voz de taquara rachada, ficava assoviando o tempo todo. Ele era capaz de assoviar até troços clássicos, mas quase sempre assoviada músicas de jazz.

(...)

Claro que eu nunca disse a ele que o achava um assoviador fabuloso. Ninguém vai chegar junto de um cara e dizer: "Você é um assoviador fabuloso". Mas morei com ele uns dois meses, apesar de toda a chatura, só porque ele assoviava bem para burro.

Por isso, tenho minhas dúvidas quanto aos chatos. Talvez a gente não deva sentir tanta pena de ver uma garota legal se casar com um deles. A maioria não faz mal a ninguém e talvez, sem que a gente saiba, sejam todos uns assoviadores fabulosos ou coisa parecida. "


J.D. Salinger, in "O Apanhador no Campo de Centeio"

segunda-feira, novembro 21, 2005

"Alle Menschen sind klug - die einen vorher, die anderen nachher"

Voltaire
"Houve um ritmo no meu sono.
Quando acordei o perdi.
Por que saí do abandono
De mim mesmo, em que vivi?

Não sei que era o que não era.
Sei que suave me embalou,
Como se o embalar quisera
Tornar-me outra vez quem sou.

Houve uma música finda
Quando acordei de a sonhar,
Mas não morreu : dura ainda
No que me faz não pensar."

Fernando Pessoa

sexta-feira, novembro 18, 2005

"Após uma boa hora de conversa, entendemo-nos perfeitamente. Amanhã vem ter comigo com as mãos na cabeça, gritando:

- Como é possível? O que é que você percebeu? Não me disse isto e isto?

Isto e isto, perfeitamente. Mas o problema é que você, meu caro, nunca saberá nem eu lhe poderei nunca dizer como se traduz, em mim, aquilo que você me disse. Não falou turco, não. Eu e você usámos a mesma língua, as mesmas palavras. Mas que culpa temos nós de que as palavras, em si, sejam vazias? Vazias, meu caro. Ao dizê-las a mim, você preenche-as com o seu sentido; e eu, ao recebê-las, inevitavelmente preencho-as com o meu sentido. Pensávamos que nos entendíamos; de fato, não nos entendemos.

E conto velho também é o fato de sabermos disso. Eu não pretendo dizer nada de novo. Apenas volto a perguntar-lhe:

- Porque continua, então, a proceder como se não o soubesse? Porque continua a falar-me de si se sabe que para ser para mim como é para você mesmo e para eu ser, para si, como sou para mim, seria preciso que eu, dentro de mim, lhe desse a mesma realidade que você dá a si mesmo, e vice-versa, e isso não é possível?

Infelizmente, meu caro, faça o que fizer, dar-me-á sempre uma realidade à sua maneira, mesmo acreditando de boa-fé que é à minha maneira; e será, não digo que não; talvez seja; mas um «à minha maneira» que eu não conheço nem poderei nunca conhecer; que apenas você, que me vê de fora, conhecerá: portanto, um «à minha maneira» para si, não um «à minha maneira para mim»."

Luigi Pirandello, in "Um, Ninguém e Cem Mil"
"Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já não o tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada. Não tenho esperanças nem saudades. Conhecendo o que tem sido a minha vida até hoje - tantas vezes e em tanto o contrário do que eu a desejara -, que posso presumir da minha vida de amanhã senão que será o que não presumo, o que não quero, o que me acontece de fora, até através da minha vontade? Nem tenho nada no meu passado que relembre com o desejo inútil de o repetir. Nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim.

O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto."

Fernando Pessoa, in "Livro do Desassossego"
"Tanto ou mais que as pessoas, os lugares vivem e morrem. Com uma diferença: mesmo já mortos, os lugares retêm a vida que os animou. No silêncio, sentimos-lhes os ouvidos vigilantes ou o rumor infatigável dos ecos ensurdecidos."

Fernando Namora, in "Jornal sem Data"
"Não se esqueça de que a tua frase é um ato. Se o seu desejo é levar-me a agir, não perca tempo com argumentos. Você realmente acredita que me deixarei determinar por argumentos? Não me seria difícil opor, às tuas, justificativas ainda melhores.

Alguma vez uma mulher repudiada te reconquistou através de um processo em que ela provava ter razão? O processo irrita. Ela nem sequer será capaz de te recuperar mostrando-te a ti mesmo tal como eras quando a amavas. Olha aquela infeliz que, nas vésperas do divórcio, teve a imbecil idéia de cantar a mesma canção triste que cantava quando noiva. Essa canção triste somente tornou o homem ainda mais furioso.

Talvez ela o recuperasse se o conseguisse despertar tal como ele era quando a amava. Mas para isso precisaria de um gênio criador, porque teria de carregar o homem de qualquer coisa, da mesma maneira que eu o carrego de uma inclinação para o mar que fará dele construtor de navios. Só assim cresceria essa árvore que depois se iria diversificando. E ele haveria de pedir novamente para ouvir a tal canção triste.

Para fundar o amor por mim, faço nascer em você alguém que é para mim. Não te confessarei o meu sofrimento, porque ele faria com que vocêr me detestasse. Não farei censuras: elas simplesmente te irritariam. Não te direi as razões que existem para amar-me, porque você já não as tem. A razão de amar é o amor. Também não me mostrarei mais tal como eu era quando você me desejava. Porque você já não me deseja. Caso contrário, ainda me amaria."

Antoine de Saint-Exupéry, in "Cidadela"
"O destino gosta de inventar desenhos e figuras. A sua dificuldade reside no que é complicado. A própria vida, porém, tem a dificuldade da simplicidade. Somente algumas coisas possuem uma dimensão que nos excede. O santo, declinando o destino, escolhe estas coisas por amor a Deus. Mas que a mulher, segundo a sua natureza, tenha de fazer a mesma escolha em relação ao homem, isso evoca a fatalidade de todos os laços de amor: decidida e sem destino, como um ser eterno, fica ao lado dele, que se transformará. Sempre a amante ultrapassa o amado, porque a vida é maior do que o destino. A sua entrega quer ser sem medida: esta é a sua felicidade. A dor inominada do seu amor, porém, foi sempre esta: exigirem-lhe que limitasse essa entrega."

Rainer Maria Rilke, in "As Anotações de Malte Lauridis Brigge"

sexta-feira, novembro 11, 2005

"Ninguém pode ver acima de si. Com isso quero dizer: cada pessoa vê em outra apenas o tanto que ela mesma é, ou seja, só pode concebê-la e compreendê-la conforme a medida da sua própria inteligência. Se esta for de tipo inferior, então todos os dons intelectuais, mesmo os maiores, não lhe causarão nenhuma impressão, e ela perceberá no possuidor desses grandes dons apenas os elementos inferiores da individualidade dela própria, isto é, todas as suas fraquezas, os seus defeitos de temperamento e caráter. Eis os ingredientes que, para ela, compõem o homem eminente, cujas capacidades intelectuais elevadas lhe são tão pouco existentes, quanto as cores para os cegos. De fato, todos os espíritos são invisíveis para os que não o possuem, e toda a avaliação é um produto do que é avaliado pela esfera cognitiva de quem avalia.

Disso resulta que nos colocamos ao mesmo nível do nosso interlocutor, pois tudo o que temos em excesso desaparece, e até mesmo a auto-abnegação exigida em tal atitude permanece irreconhecida por completo. Ora, se considerarmos o quanto a maioria dos homens é de mentalidade e inteligência inferiores, portanto, o quanto é comum, veremos que não é possível falar com ele sem, nesse ínterim, tornarmo-nos comuns (em analogia com o fenômeno da distribuição elétrica). Compreenderemos, então, a fundo, o sentido próprio e acertado da expressão «vulgarizar-se» e procuraremos de bom grado evitar toda a companhia com a qual só podemos comunicar por intermédio da parte ignominiosa da sua natureza."


Arthur Schopenhauer, in "Aforismos para a Sabedoria de Vida"

quarta-feira, novembro 02, 2005


Luto e Melancolia

Freud explica que em reação à perda de algo ou alguém, uma pessoa pode desenvolver dois tipos distintos de reação – o luto ou a melancolia. Em ambas as reações o princípio da dor pela perda é comum. A diferença reside no fato de que o luto tem claramente definida a sua perda, enquanto que na melancolia o objeto da perda permanece retirado da consciência. Na melancolia é possível saber que a morte de alguém tenha originado o estado doloroso, mas não se pode saber o que de si se perdeu neste alguém. Deste modo, ao contrário do luto que pode, ao fim do processo, separar-se do objeto perdido, a melancolia permanece atrelada à perda.