quinta-feira, agosto 31, 2006

"A variedade é a única desculpa da abundância. Ninguém deveria deixar vinte livros diferentes, a menos que seja capaz de escrever como vinte homens diferentes. As obras de Victor Hugo enchem cinquenta grossos volumes, mas cada volume, cada página quase, contém todo o Victor Hugo. As outras páginas somam-se como páginas, não como gênio. Nele não existia produtividade, mas prolixidade. Desperdiçou o seu tempo como gênio, por pouco que o tivesse desperdiçado como escritor. A opinião de Goethe a seu respeito continua a ser suprema, apesar de ter sido precocmente emitida, e uma grande lição para todos os artistas: «Deveria escrever menos e trabalhar mais», disse ele. Este parecer, na sua distinção entre o trabalho a sério, que não se espraia, e o trabalho fictício, que ocupa espaço (pois as páginas nada mais são do que espaço), é uma das grandes opiniões críticas do mundo. Se conseguir escrever como vinte homens diferentes, é vinte homens diferentes, seja lá como for, e os seus vinte livros têm justificação."

Fernando Pessoa, in "Heróstato"

segunda-feira, agosto 21, 2006

Pessoas felizes não escrevem. Escrever é algo que resulta necessariamente de algum grau de mal-estar. A palavra mais usada na literatura atual é muito curta: "eu".

Não sei se é possível considerar literatura a enorme quantidade de blogs existentes na web. O número de textos escritos na primeira pessoa é impressionante. Esse tipo de texto era praticamente desconhecido no passado. Os evangelhos, por exemplo, foram redigidos por autores ilustremente anônimos, que jamais ousariam mencionar uma impressão pessoal no texto sagrado.

Levanto a questão porque hoje visitei a página de uma conhecida e pude acompanhar mais uma frívola etapa de sua luta contra o excesso imaginário de peso e as sedutoras confeitarias alemãs. Em outro post, repleto de fotos, há comentários a respeito de sua última viagem a Portugal.

Típico sintoma de mediocridade crônica e empobrecimento emocional, eu diria. Passar o tempo todo almejando 15 dias de pseudo-aventuras em férias obrigatórias? Viver o aqui e agora, refletir, questionar, com toda a intensidade possível, são hipóteses ameaçadoras demais, que deixaram definitivamente de ser cogitadas.

Velejar pelas ilhas gregas, visitar museus em Londres, freqüentar uma academia. Essas atividades, segundo seus entusiastas, têm um valor intrínseco e não só ostentatório: treino ou viajo para meu próprio bem ou para meu prazer, não para merecer a consideração ou suscitar a inveja dos outros. Não estou, contudo, NADA convencida disso. Essas supostas vivências e cuidados continuam a serviço das aparências.

Tenho para mim que essa epidemia de textos escritos em primeira pessoa exprime, na grande maioria das vezes, o egoísmo e vaidade dos autores. Por que essas pessoas tão bem resolvidas, saudáveis e viajadas escrevem? Escrever algo que preste é conseqüência de algum grau de neurose. A recíproca, porém, não é verdadeira: todo Kafka é um neurótico, mas nem todo neurótico é um Kafka.

Para finalizar, quero deixar claro que sou a favor da expressão escrita. Escrever quase sempre é uma ótima experiência, mesmo para aqueles que, como eu, não têm intimidade com as palavras ou não sabem usá-las de maneira original e criativa. Livro, blog, diário íntimo, e-mail, carta, tanto faz, desde que todos esses textos terminem com um grande ponto de auto-interrogação.
A amizade, até mais do que o amor, é um negócio que dá muito trabalho. Geralmente as pessoas que se queixam da solidão são pessoas extremamente avaras - não estou falando de dinheiro, estou falando de si mesmo. Não se consegue uma amizade sem generosidade. Amizade verdadeira custa bastante caro.

domingo, agosto 20, 2006

"Am Grabe der meisten Menschen trauert, tief verschleiert, ihr ungelebtes Leben."
Oskar Jellinek

"Wer neue Heilmittel scheut, muss alte Übel erdulden."
Francis Bacon

quarta-feira, agosto 16, 2006

As grandes comunhões não acontecem em meio aos risos de uma festa. Elas acontecem, paradoxalmente, na ausência. É precisamente na ausência que a proximidade é maior.

"Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada,
aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência,
essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim."

Estar com alguém não quer dizer comunhão. O estar acompanhado frequentemente é uma forma terrível de solidão, um artifício para evitar o contato consigo mesmo.

Cecília Meireles, lindamente descrita por Drummond:

"...Não me parecia criatura inquestionavelmente real; e por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me a impressão de que ela não estava onde nós a víamos... Distância, exílio e viagem transpareciam no seu sorriso benevolente? Por onde erraria a verdadeira Cecília?..."

sexta-feira, agosto 11, 2006

A provisoriedade se soma ao caráter descontínuo do tempo. Vivo em um espaço de transição. Essa situação de precariedade dificulta a adaptação e a organização da vida: trabalho, estudo, moradia, relações sociais e afetivas, tudo tem contornos imprecisos e frágeis.

Continuo tentando agradar ao grupo social que deixei para trás. Presença e ausência se entrelaçam, ou seja, ausento-me fisicamente e estou mentalmente presente. Sinto-me traída e abandonada pelos que ficaram. Tenho a sensação de que a minha presença não era um diferencial na vida das pessoas que se mantêm importantes para mim.

A adaptação deve existir, digo a mim mesma todos os dias, mas tenho medo de que ela destrua o desejo de retorno. Observo a adaptação à cultura alemã com desprezo. Ela significaria a renúncia ao Brasil. Brasil ingrato, desapontador, mas ainda assim familiar, referencial de todo o meu afeto.

quarta-feira, agosto 09, 2006

"Werde ich sterben können -? Manchmal fürchte ich, ich werde es nicht können.

Da denke ich so: wie wirst du dich dabei aufführen? Ah, nicht die Haltung - nicht das an der Mauer, der Ruf "Es lebe..." nun irgend etwas, während man selber stirbt; nicht die Minute vor dem Gasangriff, die Hosen voller Mut und das heldenhaft verzerrte Angesicht dem Feinde zugewandt ... nicht so. Nein, einfach der sinnlose Vorgang im Bett. Müdigkeit, Schmerzen und nun eben das. Wirst du es können?

Zum Beispiel, ich habe jahrelang nicht richtig niesen können. Ich habe geniest wie ein kleiner Hund, der den Schluckauf hat. Und, verzeihen Sie, bis zu meinem achtundzwanzigsten Jahre konnte ich nicht aufstoßen - da lernte ich Karlchen kennen, einen alten Korpsstudenten, und der hat es mir beigebracht. Wer aber wird mir das mit dem Sterben beibringen?

Ja, ich habe es gesehn. Ich habe eine Hinrichtung gesehn, und ich habe Kranke sterben sehn - es schien, daß sie sich sehr damit plagten, es zu tun. Wie aber, wenn ich mich nun dabei so dumm anstelle, daß es nichts wird? Es wäre doch immerhin denkbar.

'Keine Sorge, guter Mann. Es wird sich auf Sie herabsenken, das Schwere - Sie haben eine falsche Vorstellung vom Tode. Es wird...' Spricht da jemand aus Erfahrung? Dies ist die wahrste aller Demokratien, die Demokratie des Todes. Daher die ungeheure Überlegenheit der Priester, die so tun, als seien sie alle schon hundertmal gestorben, als hätten sie ihre Nachrichten von drüben - und nun spielen sie unter den Lebenden Botschafter des Todes.

Vielleicht wird es nicht so schwer sein. Ein Arzt wird mir helfen, zu sterben. Und wenn ich nicht gar zu große Schmerzen habe, werde ich verlegen und bescheiden lächeln: 'Bitte, entschuldigen Sie... es ist das erste Mal...'"

Kurt Tucholsky, in "Befürchtung"

segunda-feira, agosto 07, 2006

Desconfortável. Meu coração acelera. Trata-se da iminente visita do visitante nunca bem-vindo. Desta vez a sensação é mais forte do que das anteriores, e o visitante permanece mais tempo.

O caminho até a estação de metrô parece não acabar nunca. Arrasto o corpo passo por passo. Depois de voltar para casa e virar a chave, tenho a impressão de que a porta ficou muito mais pesada. Uma vez dentro da casa, deito-me e permaneço na mesma posição durante horas.

Já passei por isso antes.

O telefone toca, mas não encontro forças para atender. Arrasto-me até o banheiro sem ter comido um único biscoito. Fecho os olhos, e o visitante ajuda a dormir. O sono, entretanto, não é um alívio. O visitante envenena meus sonhos.

Ao meio-dia chego a pensar em telefonar para o médico, mas não telefono. O mal-estar faz com que eu novamente me desinteresse por tudo. Inclusive pelo meu próprio restabelecimento.

sexta-feira, agosto 04, 2006

O pensamento voa, viaja 9800 km, mas as pessoas permanecem confortavelmente presas. Presas a tudo o que não muda, ao que permanece, ao que se repete e ao que é sempre igual. A lembranças e memórias, ao passado que é permanente.

Confortavelmente presas a padrões. Um metro, uma hora, o mesmo caminho para o trabalho, voltar ao mesmo restaurante e sentar na mesma mesa. A repetição dá segurança, porque cria a falsa ilusão de que nada vai mudar. E se nada mudar, nada de ruim poderá acontecer. Tudo será igual, com o mesmo final feliz. Crianças adoram ver o mesmo filme mil vezes, porque assim podem antecipar as próximas cenas, e têm certeza de como a história terminará.

As pessoas constroem cintos de segurança. Podem ser um nome, um amuleto, uma mania, uma repetição qualquer. Uma crença, um dogma, uma frase feita, um chavão, lugar-comum. “Vaso ruim não quebra.” “Jesus voltará.” Qualquer um serve.

Os cintos são são cuidadosamente apertados, para que seus donos não caiam - em si mesmos.
"Uma importante varie­dade do prazer e, com isso, fonte da moralidade, provém do hábito. O usual faz-se mais facilmente, melhor, portanto, com mais agrado, sente-se nisso um prazer e sabe-se, por experiência, que o habitual deu bom resultado, daí é útil; um costume, com o qual se pode viver, está provado que é salutar, pro­veitoso, ao contrário de todas as tentativas novas, ainda não comprovadas. O costume é, por conse­guinte, a união do agradável e do útil; além disso, não exige reflexão. Assim que o homem pode exer­cer coacção, exerce-a para impor e introduzir os seus costumes, pois para ele, eles são a comprovada sabedoria prática. De igual modo, uma comunidade de indivíduos obriga cada um deles ao mesmo cos­tume.

Aqui está a conclusão errada: porque uma pessoa se sente bem com um costume ou, pelo me­nos, porque por intermédio do mesmo assegura a sua existência, então esse costume é necessário, pois passa por ser a única possibilidade de uma pessoa se conseguir sentir bem; o agrado da vida parece emanar exclusivamente dele. Esta concepção do habitual como uma condição da existência é aplica­da até aos mais pequenos pormenores do costume: dado que o conhecimento da verdadeira causalidade é muito escasso entre os povos e as civilizações que se encontram a um nível baixo, vela-se, pois, com supersticioso receio, por que tudo continue a seguir com o mesmo andamento; mesmo quando o costume é dificil, austero, incómodo, é conserva­do, devido à sua utilidade aparentemente supe­rior. Não se sabe que o mesmo grau de bem-estar também pode existir com outros costumes e que até é possível alcançar graus mais elevados. Mas aquilo que se percebe bem é que todos os costu­mes, até os mais austeros, com o tempo se tornam mais agradáveis e suaves e que até o modo de vida mais severo se pode tornar um hábito e, portanto, um prazer."

Friedrich Nietzsche, in "Humano, Demasiado Humano"

quarta-feira, agosto 02, 2006

Tenho observado ao longo do tempo que tuas posições são sempre contestatórias, sempre duvidando de tudo e de todos. É interessante. Você não engole qualquer coisa. Ou melhor, não engole nada. Não assiste filme americano, não ouve música de artista vendido, quer dizer, que vende, não acredita em políticos que não sejam radicais e desconfia de quase tudo o que ouve. O mundo parece te dever explicações.

Vejo o olhar de superioridade que você lança para os que defendem argumentos, sejam lá quais forem, ou torcem para a seleção brasileira, ou gostam de filmes, peças, shows e discos que fazem sucesso, ou fazem programas que estão na moda. Como lhe parece entediante o mundo e seus cidadãos. Achincalhar argumentos é tão mais divertido! Mostrar o podre do mundo, dos projetos e das pessoas é tão mais sagaz!

Dizer um não, simples e rotundo, ao mundo e à vida, pode parecer charmoso e te conferir um ar de sofisticação. De quem não se contenta com qualquer coisa. Sim, é verdade. Só que quem não se contenta com nada está fadado ao insucesso. Ser infeliz de propósito, ser um perdedor por iniciativa própria é antes de tudo uma demonstração de total covardia.

Odiar não é uma postura corajosa. E era isso o que eu tinha para lhe dizer: odiar é muito confortável e parece a solução para tudo o que você não entende e não sabe como lidar. Você odeia tudo o que não entende. E você não entende quase nada porque odeia tudo.