quarta-feira, setembro 29, 2004

"Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim,
Anda o Mundo concertado."

Luís de Camões

terça-feira, setembro 28, 2004

“Encontro pela vida milhões de corpos; desses milhões posso desejar centenas; mas dessas centenas, amo apenas um. O outro pelo qual estou apaixonado me designa a especialidade do meu desejo. Foram precisos muitos acasos, muitas coincidências surpreendentes (e talvez muitas procuras), para que eu encontre a Imagem que, entre mil, convém ao meu desejo. Eis um grande enigma do qual nunca terei a solução: por que desejo ESSE?”

Fragmentos de um Discurso Amoroso - Roland Barthes


“Todo texto é absorção e transformação de outros textos” – Julia Kristeva


Hermann Hesse: a pessoa objeto de amor é apenas um símbolo, um lago onde o rosto da “Outra”, idealizada, aparece refletido.


"Amamos sempre, no que temos,
O que não temos quando amamos.
O barco pára, largo os remos
E, um a outro, as mãos nos damos.
A quem dou as mãos? À Outra.
Teus beijos são de mel de boca,
São os que sempre pensei dar,
E agora a minha boca toca
A boca que eu sonhei beijar.
De quem é a boca? Da Outra..."

Fernando Pessoa

segunda-feira, setembro 27, 2004

Lilitchka (em lugar de uma carta)


Fumo de tabaco rói o ar.
O quarto -
um capítulo do inferno de Krutchonik.
Recorda -
atrás desta janela
pela primeira vez
apertei tuas mãos, atônito.
Hoje te sentas,
no coração - além.
Um dia mais
e me expulsarás,
talvez com zanga.

No teu "hall" escuro longamente o braço,
trêmulo, se recusa a entrar na manga.
Sairei correndo,
lançarei meu corpo à rua.
Transtornado,
tornado
louco pelo desespero.
Não o consintas,
meu amor,
meu bem,
digamos até logo agora.
De qualquer forma
o meu amor
- duro fardo por certo -
pesará sobre ti
onde quer que te encontres.

Deixa que o fel da mágoa ressentida
num último grito estronde.
Quando um boi está morto de trabalho
ele se vai
e se deita na água fria.
Afora o teu amor
para mim
não há mar,
e a dor do teu amor nem a lágrima alivia.
Quando o elefante cansado quer repouso
ele jaz como um rei na areia ardente.
Afora o teu amor
para mim
não há sol,
e eu não sei onde estás e com quem.
Se ela assim torturasse um poeta,
ele
trocaria sua amada por dinheiro e glória,
mas a mim
nenhum som me importa
afora o som do teu nome que eu adoro.
E não me lançarei no abismo,
e não beberei veneno,
e não poderei apertar na têmpora o gatilho.
Afora
o teu olhar
nenhuma lâmina me atrai com seu brilho.

Amanhã esquecerás
que eu te pus num pedestal,
que incendiei de amor uma alma livre,
e os dias vãos - rodopiante carnaval -
dispersarão as folhas dos meus livros...
Acaso as folhas secas destes versos
far-te-ão parar,
respiração opressa?

Deixa-me ao menos
arrelvar numa última carícia
teu passo que se apressa.

26 de maio de 1916 – Petrogrado

Vladimir Maiakoviski

"... Cheiro a terra as árvores e o vento
Que a Primavera enche de perfumes
Mas neles só quero e só procuro
A selvagem exalação das ondas
Subindo para os astros como um grito puro.”
Sophia de Mello Breyner Andresen
“No táxi, pensativo, já além da rua do Ouro, no exato momento em que supôs estar chegando ao Atlântico, Mayol constatou, na realidade, ser aquela a primeira vez em que de fato via o mar. Extasiava-o ver as ondas avançarem até a orla com faíscas malévolas e crescerem mais e mais, reluzentes como se fossem de vidro, tensas feito cobras; abriam as mandíbulas e ficavam quietas, prendendo a respiração por apenas um instante, para logo dar o bote com um rugido que parecia acompanhado de ecos vagabundos no ar de ecos feitos os de uma ladainha – divagou Mayol –, que repetiam e repetiam uma única palavra, a palavra desespero, desespero: uma palavra que talvez já estivesse indo embora.”
A viagem vertical - Enrique Vila-Matas