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Em tudo o que eu engolia ficava uma ponta de tradução atravessada em minha garganta: os filmes com legendas em português, as histórias em quadrinhos, os livros, as notícias. Éramos uma versão pobre do que a vida deveria ser – e a vida sempre vinha em inglês, em francês, em alemão. Mesmo quando dizia ‘eu te amo’ ou ‘não me chateia’, eu me sentia vagarosamente ridículo, apropriador – feito um homem de série da televisão mal dublado; minha boca fechada e as palavras ainda saindo, um ventríloquo com descontrole psicomotor.
Não lia, portanto, O Negrinho do Pastoreio – o que já preparava o terreno até para eu deixar de ler Machado de Assis ou Dalton Trevisan. Comprava Pocketbooks, que eram mais baratos, mais engraçados, e, de certa forma, sobre mim, a meu respeito.
Reconheci, pelo paladar, pelos olhos, certas coisas tipicamente brasileiras (o problema é que eram típicas): feijoada, dendê, folha seca de Dindi, Noel Rosa, escola de samba. Mas a essência, a parte que tratava de mim (nos meus seis quarteirões, na cidade do sul do país) e de minha relação com os severinos todos, essa parte era sempre tratada em outra língua; eu pertencia aos estrangeiros, foram eles que me disseram como vim a fazer parte ou como nunca fiz parte. Eu era, como todo brasileiro, um improvisador, um adaptador, um tradutor, comnsequentemente um traidor – porque eu olhava para a cara de meu semelhante e não sabia como poderíamos nos entender, o que ele tinha a me dizer, o que eu poderia lhe dizer, como juntos conseguiríamos nos salvar. No entanto, o tempo todo, eu era, eu sou, apenas mais um João, só que em russo.”
Ivan Lessa, in “Somos todos estrangeiros”