Nosso plano foi desmascarado durante uma das visitas diárias dos meus pais à obra. Rendendo-se ao inevitável, aceitaram a gata como parte da família. Era uma tarde ensolarada das férias escolares de 1993. Lembro-me de ter cuidadosamente retirado, com um pente bem fino e uma bacia de água morna, todos os parasitas que a infestavam. Raísa evidentemente protestou contra o processo de limpeza, mas ao mesmo tempo olhou-me profundamente e aceitou-me como dona. Ou melhor: resignou-se. Um rostinho tão delicado e inomum.
Foram 12 anos de carinho. Assistimos muita TV a cabo juntas nas minhas madrugadas insones. Ela impediu-me muitas vezes de finalizar raciocínios importantes para as petições feitas no computador de casa nos finais de semana, porque ao exigir atenção subia em cima do teclado e tornava qualquer tentativa de digitação simplesmente impossível. Uma de suas atividades prediletas era afiar as garras no meu roupão de banho ou na barriga sonolenta do meu pai, encostado no sofá enquanto via o Jornal Hoje após o almoço.
Ela tinha medo de fogos de artifício. Felizmente não eram tão frequentes assim as ocasiões nas quais esses rojões tornavam o céu pequeno para tanta fumaça.
Hoje à noite recebi a notícia. Não pude me despedir. Não sei se ela compreendeu que infelizmente não pude estar presente quando meu irmão teve de tomar sozinho a terrível decisão de sacrificá-la. Não pude levá-la até o fim. Atendendo a um pedido meu, recebeu antes da longa jornada um pouco de requeijão, seu alimento predileto - e também o único que despertava algum interesse nessa fase terminal. Não sei se teria me escolhido ou novamente me aceitado neste último momento. Ou se agora, embora maior do que a minha mão, fosse capaz de ser maior do que a minha saudade.