Rua Rishin Matsuda, 722
Logo na entrada há um sentimento de tempo. O portão já está enferrujado e o trinco se encontra num lugar que só as mãos dos netos conhecem. As plantas da garagem nunca utilizada parecem mais verdes e úmidas do que as outras, com longos copos-de-leite e samambaias.
A casa do meu avô é sempre quieta. Há um tradicional silêncio na sala e um repouso enlutado em suas poltronas. Sobre o o assoalho mal encerado ainda escorrega o fantasma do cachorrinho Toby, e persistem as manchas e o mesmo taco solto de outras primaveras. As coisas vivem como em preces, nos mesmos lugares onde as situaram as mãos do meu avô, quando ainda eram vivas, ágeis e lisas. Rostos infantis dos netos se olham dos porta-retratos, a se amarem e compreenderem mudamente. O calendário de 1966, com marcas de bolor e a foto do time do Palmeiras, repete incansavelmente feriados já degustados, em uma época na qual o meu avô ainda jogava o seu amado futebol.
Há ainda um corredor à escuta, de cujo teto à noite pende uma luz verde, com negras aberturas para dois quartos cheios de sombra. Na estante é possível localizar “O morro dos ventos uivantes”, edição de 1970, com o dorso puído de tato e de tempo. Foi através da “Biblioteca do Escoteiro Mirim” presenteada pelo avô que o olhar da neta mais velha pasmou-se primeiro com o que passaria a ser para ela um de seus maiores prazeres: a palavra.
Embaixo há sempre refrigerante na geladeira e sonho de valsa no armário da cozinha. E porque é uma casa velha, há sempre uma barata que aparece e é morta com uma repugnância que vem de longe. Em cima fica a cama onde o meu avô repousava de sua agitação diurna, hoje vazia. A imagem dele persiste. Seus óculos dormem encostados junto ao criado-mudo. Ainda é possível ouvir o brando ronco de sua sesta vespertina. Ausente para sempre, a figura do meu avô mergulha a casa docemente na eternidade.