"A grande e decisiva arma é a ignorância. É bom, dizia Sigisberto, no seu jantar de aniversário, que eles nada saibam, nem ler, nem escrever, nem contar, nem pensar, que considerem e aceitem que o mundo não pode ser mudado, que este mundo é o único possível, tal como está, que só depois de morrer haverá paraíso, o padre Agamedes que explique isto melhor, e que só o trabalho dá dignidade e dinheiro, porém não têm de achar que eu ganho mais do que eles, a terra é minha, quando chega o dia de pagar impostos e contribuições, não é a eles que vou pedir dinheiro emprestado, que aliás sempre foi assim, e será, se não for eu a dar-lhes trabalho, quem o dará, eu e eles, eu que sou a terra, eles que o trabalho são, o que for bom para mim, bom para eles é, foi Deus que quis assim as coisas, o padre Agamedes que explique melhor, em palavras simples que não façam mais confusão à confusão que têm na cabeça, e se o padre não for suficiente, pede-se aí a guarda que dê um passeio a cavalo pelas aldeias, só a mostrar-se, é um recado que eles entendem sem dificuldade. Mas diga-me, senhora mãe, bate também a guarda nos donos do latifúndio, Credo, que esta criança não regula bem da cabeça, onde é que tal se viu, a guarda, meu filho, foi criada e sustentada para bater no povo, Como é possível, mãe, então faz-se um guarda só para bater no povo, e que faz o povo, O povo não tem quem bata no dono do latifúndio que manda a guarda bater no povo, Mas eu acho que o povo podia pedir a guarda que batesse no dono do latifúndio, Bem digo eu, Maria, que esta criança não esta em seu juízo, não a deixes andar por aí a dizer estas coisa que ainda temo trabalhos com a guarda.
O povo fez-se para viver sujo e esfomeado. Um povo que se lava é um povo que não trabalha, talvez nas cidades, enfim, não digo que não, mas aqui no latifúndio, vai contratado por três ou quatro semanas para longe de casa, e meses até, se assim convier a Alberto, e é ponto de honra e de homem que durante todo o tempo do contrato se não lave nem cara nem mãos, nem a barba se corte. E se o fizer, hipótese ingênua de tão improvável, pode contar com a troça dos patrões e dos próprios companheiros. É esse o luxo da época, gloriarem-se os sofredores do seu sofrimento, os escravos da escravidão. É preciso que este bicho da terra seja bicho mesmo, que de manhã some a remela da noite à remela das noites, que os sujos das mãos, da cara, dos sovacos, das virilhas, dos pés, do buraco do corpo, seja o halo glorioso do trabalho no latifúndio, é preciso que o homem esteja abaixo do animal, que esse, para se limpar, lambe-se, é preciso que o homem se degrade para que não se respeite a si próprio nem aos seus próprios.
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Quando estes casamentos se fazem, às vezes já vem um filho na barriga. Deita o padre a bênção a dois e ela cai sobre três, conforme se vê pelo redondo da saia, às vezes empinada já. Mas mesmo quando assim não é, vá a noiva virgem ou desvirgada, muito de estranhar será passar um ano sem filho. E, quando deus quer, é um fora, outro dentro, mal a mulher pariu, logo ocupa. É uma brutidão de gente, ignorantes, piores que animais, que esses têm seu cio e seguem as leis da natureza. Mas estes homens chegam do trabalho ou da taberna, enfiam-se no catre, esquece-os o cheiro da mulher ou o rescaldo do vinho ou o apetite da a fadiga e passam-lhe para cima, não conhecem outras maneiras, arfam, brutos sem delicadeza, e lá deixam a seiva a abeberar nas mucosas, nessa trapalhada de miudezas de mulher que nem um nem outro entendem. Bem está isto, que não é fazê-los em mulheres alheias, mas a famílias cresce, encheram-se de filhos, não tiveram cuidado, Mãe, tenho fome, a prova de que Deus não existe é não ter feito os homens carneiros, para comerem as ervas dos valados, ou porcos, para a bolota. E se mesmo assim bolotas e ervas comem, não pode fazer em sossego, porque l’s estão o guarda e a guarda, de olho fito e espingarda fácil, e se o guarda em nome da propriedade de Norberto, se não ensaia nada para mandar tiro a uma perna ou tiro que mate mesmo, a guarda que o mesmo também faz quando lhe dão ordem ou sem esperar por ela, tem os mais benignos recursos de prisão, multa e sova entre quatro paredes. Mas isto, senhores, é umacesta de cerejas, tira-se uma, vêm três ou quatro agarradas, e não falta por aí latifúndio que tenha o seu cárcere privado e o seu código penal próprio. Nesta terra faz-se justiça todos os dias, onde que iríamos parar se a autoridade faltasse.
Cresce a família, mesmo morrendo muito infantes, de suas doenças de caganeira líquida, desfazem-se em merda os podres anjinhos e extinguem-se como pavios braços e pernas mais gravetos que outra coisa, e a barriga inchada, e estão assim até que chegada a hora, abre pela última vez os olhos só para verem ainda a luz do dia, quando não acontece morrerem as escuras, no silêncio do casebre, e quando a mãe acorda dá com o filho morto e lá começam os gritos, sempre os mesmos, que estas mães a quem morrem os filhos não são capazes de inventar nada, estupores. Quando aos pais, estes ficam secos, e no dia seguinte vão à taberna com o ar de quem vai matar alguém ou alguma coisa. Voltam bêbedos e não matam nada e nem ninguém.
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Ia a mulher ao merceeiro e requeria, Faz-me o favor, fie-me lá o resto do avio porque esta semana o meu marido não ganhou nada por não haver trabalho. Ou ainda, pondo de vergonha os olhos no balcão, como quem não tem outra moeda com que pagar, Senhor, o meu marido para o Verão já ganhará mais ordenado, depois faz contas consigo e paga-lhe o atrasado. E o merceeiro, batendo com punho na costaneira, respondia, Essa conversa já eu ouço a muito tempo, depois passa o Verão e fica cá o cão a ladrar à mesma, as dívidas são cães, tem graça esta, quem teria sido o primeiro a lembrar-se de tal, isto é um povo de invenções miúdas e necessitadas, imagine-se o rol do merceeiro ou do padeiro, ali escrito em grossos números, a lápis, tanto aquele, tanto este, um cachorro pequeno, todo felpa, pode crescer, e esta fera de dentuça como o lobo, dívida grossa já do passado ano, ou paga ou corto-lhe o fiado, Mas os meus filhos têm fome e as doenças, o meu homem sem trabalho, não tem o dom de nos venha, Quero lá saber, só leva depois de pagar. Ladram por toda esse terra os cães, ouvimo-los às portas, vêm atrás de quem não pagou, mordendo-lhe nas canelas, mordem-lhe na alma que o merceeiro venha à rua e diz para quem o quer ouvir, Diga lá ao seu marido, o resto já se sabe. Há quem espreite pelos postigos para ver quem é a da vergonha, são crueldades de pobre, hoje tu, amanhã eu, não se pode levar a mal.
Quando o homem se queixa, alguma coisa lhe dói. Queixemo-nos pois desta ferocidade sem nome, e é pena que não tenha, Que vai ser de nós hoje, só com esse dinheiro, e as semanas tão atrasadas, a merceeiro não fia, de cada vez lá vou, ameaça que nos levanta o crédito, nem um tostão mais, Mulher, vai lá experimentar, isso são palavras da boca para fora, o homem não tem nenhuma pedra no lugar do coração, Eu sozinha não vou, que já não tenho cara de entrar naquela porta, só se tu fores comigo, Então vamos os dois, mas um homem não muito para estas coisas, o seu dever é ganhar-lo, fazê-lo render é com a mulher, além de que as mulheres são habituadas, protestam, juram, regateiam, fazem choradeira, capazes até de se atirarem para o chão, aí o copo de água que a pobrezinha teve um ataque, e um homem vai, mas vai a temer, porque devia ganhar e não ganha, porque devia governa a família e não governa, Senhor padre Agamendes, como posso eu cumprir o que prometi quando casei, diga-me lá. Chegamos à loja e estão outros fregueses, uns saem outros entram nem todos de compra pacífica e nós vamos ficando para trás, aqui neste canto, ao pé da saca do feijão, mas cuidado não pense ele que viemos para o roubar. Não há mais fregueses, aproveitemos agora, então avanço eu que sou homem, tenho as mãos a tremer, Senhor José, fazia-me o favor de aviar, mas olhe que esta semana não lhe posso pagar o avio todo, porque tive semana ruim, depois em ganhando melhor ordenado pago-lhe tudo, esteja descansado, que não lhe fico a dever nada. Diga-se agora que estas palavras não são novas, já foram ditas na página de trás, ditas em todo o livro do latifúndio, como se haveria de esperar que a resposta fosse diferente, Não senhor, não lhe fio mais nada, mas antes que tal resposta fosse dada, a mão do merceeiro recolheu, foi um rapa, o dinheiro todo que para o abrandar eu pusera em cima do balcão e depois é que respondeu. E eu disse, com toda a calma que podia, que Deus sabe qual, que pouca era, Senhor José, não me faça uma coisa destas, então o que vou eu dar de comer aos meus filhos, tenha dó de mim E ele disse, Não quero saber, não lhe fio mais nada, por favor, ao menos dê-me o avio no valor do dinheiro que me tirou, só para remediar, para dar alguma coisa de comer aos meus filhos, até que arranje outro rumo. E ele disse, Não lhe posso fiar mais nada, esta quantia que recebi nem dá para a quarta parte do que me deve. Deu um soco no balcão, desafia-me, e eu vou bater-lhe, dar-lhe com a rasoira do alqueire, ou espetar-lhe a faca, sim, a navalha, esta lâmina curva, esta adaga de mouro, Aí homem que de desgraças, olha os nossos filhos, não faça caso, senhor José, não leve a mal, isto é desespero do pobre. Sou puxado até à porta, Mulher, larga-me que eu mato esse malandro, mas vai-mi o pensamento pensando, não mato, não sei matar, e ele diz-me, lá de dentro, Se eu fiar a toda a gente e não me pagarem, como é que eu vivo. Todos temos razão, quem é o meu inimigo.
José Saramago, in "Levantado do chão"